Há muito este movimento protecionista se fomentou em nosso meio. Pregações exaltadas invocam este direito aos pastores, bispos e apóstolos modernos e aos profetas do neopentecostalismo. Já presenciei algumas destas pregações, onde vociferam-se maldições e promessas de juízo divino àqueles que se oporem às idéias, diretrizes, doutrinas e revelações dos “ungidos”, numa clara tentativa de intimidação aos contrários ― na maioria das vezes bem sucedida, pois impõe medo aos ouvintes. Numa destas “pregações”, um famoso pastor norte-americano ― você deve ter um de seus best sellers em casa! ― lança uma série de maldições a seus opositores, maldições extensivas a seus filhos e netos, num claro desconhecimento escriturístico de que os descendentes não pagarão pelos pecados dos ancestrais, segundo Jr 31:29 e Ez 18. Assim, o púlpito da igreja, que deveria ser usado para ensino, conforto e exortação na sã doutrina, está sendo usado em causa própria, para invocar um pretenso direito de intocabilidade, para garantir uma imunidade (a meu ver, seria melhor se chamada “impunidade”) plena a obreiros que não desejam questionamentos de nenhuma espécie, já que dirigem a igreja por meio de revelações inquestionáveis.
Os defensores desta ideia rotulam seus opositores como “rebeldes” e “murmuradores”. Lançam mão das inúmeras passagens bíblicas que apontam para o fim trágico dos que assim agiram no passado (os episódios de Datã, Abirão, Core, Arão e Miriã contra Moisés, e Absalão e Seba contra Davi), e com isto conseguem, na maioria das vezes, abafar as tentativas internas de questionamento. E quando a oposição se origina de fora, dentre os não crentes, os “ungidos” primeiramente trabalham em prol da desmoralização das denúncias (e principalmente dos denunciantes), enquanto assumem a piedosa postura de “perseguidos por amor ao Evangelho”, e ponto final. Por exemplo, se o dirigente de uma igreja é flagrado pela fiscalização secular desviando dinheiro, por mais que haja evidências ou provas contra ele, sua pueril defesa se baseia na afirmação de que está sendo perseguido por incrédulos e infiéis (como se o status de não-crente fosse condição desqualificante!), pelo fato de estar servindo a Deus fielmente, inclusive dando frutos em seu ministério (confundem frutos com resultados... Em breve, postarei alguma coisa acerca disto)... E a maioria engole esta bucha, principalmente as suas “ovelhas”, que partem imediatamente em defesa de seu inocente e perseguido pastor.
Antes de tudo é necessário enxergarmos as diferenças entre oposição e rebelião, pois apesar de parecer se tratar da mesma coisa, são muito diferentes. A oposição é a discordância de um ou mais pontos de vista, sempre no campo das idéias e da conduta; a rebelião transcende as idéias, e passa a ter conotações pessoais, quando, com ou sem oposição, se usurpa uma posição, conspirando contra seu detentor para afastá-lo, destituí-lo ou reduzir-lhe a autoridade. Com a oposição, busca-se convencer alguém de alguma atitude errada, visando correção e mudança de atitude; com a rebelião, não se visa correção, mas sim a tomada do poder ou a derrubada de uma autoridade. A oposição é pública e aberta; a rebelião na ampla maioria das vezes é oculta e velada, planejada na calada da noite. Os opositores não se tornam inimigos, apenas adversários; os rebeldes assumem uma postura de inimizade e disputa ferrenha. É possível conviver pacificamente com opositores; o mesmo é impossível com os rebeldes. É possível se chegar a um acordo com os opositores, mas impossível com os rebeldes. É desnecessário dizer que condenamos veemente e ferozmente qualquer tentativa de rebelião no meio da igreja.
A totalidade dos textos bíblicos usados pelos defensores dos “ungidos” trata, na verdade, de clara rebelião, e não de oposição ou questionamento. Questionar com o intuito de corrigir jamais pode ser tratado como rebelião. Observe-se que os diáconos foram instituídos pelos Apóstolos após uma murmuração dos cristãos gregos contra os judeus (At 6:1-7), o que nos mostra que nem toda murmuração é maligna e diabólica. Outro exemplo clássico de divergência ocorreu ainda no primeiro século, quando os apóstolos e anciãos da igreja se reuniram em concílio para resolver um problema entre dois grupos, em relação à obrigatoriedade da observância da Lei pelos crentes gentios (At 15); mesmo em meio às discussões, foi possível se chegar a um acordo, e a decisão conduziu a igreja a uma unidade de fé. Observamos assim que até mesmo no seio da igreja pode (e deve!) existir a chamada “crítica construtiva”, que poderá ser usada para corrigir ou melhorar condutas e formas de governo. Ainda no AT, Moisés deu ouvidos a uma crítica de seu sogro, e com isso melhorou sua forma de administrar o sistema judiciário em Israel (Ex 18:13-27). Contudo, é inegável que quando o questionamento ou a murmuração têm por objetivo destituir a liderança ou minar-lhe a autoridade de forma covarde e sumária, a situação passa a ser rebelião, tomando uma dimensão totalmente condenável em todos os seus aspectos.
Podemos considerar algumas coisas básicas a respeito da "intocabilidade", à luz da Bíblia:
Primeiro, esta condição foi originariamente dada por Deus aos Patriarcas. Os textos da Escritura que relatam a ordem divina de “não toqueis os meus ungidos” estão inegavelmente contextualizados aos primeiros Pais de Israel (Abraão, Isaque e Jacó), que por sua pouca força e número necessitavam da proteção divina para a sua sobrevivência e para a criação de uma nação. Na vida de Abraão e Isaque vemos Deus guardando a cada um contra arbitrariedades de reis e tiranos da antiguidade. Até por sonhos o Senhor repreendia os perseguidores e protegia seus ungidos (Gn 20:1ss; 31:22-24). Jacó, após a traição de Simeão e Levi contra os filhos de Siquém, recém pactuados e circuncidados como sinal deste pacto, demonstrou preocupação com uma possível represália dos povos vizinhos (Gn 34:30), já que este tipo de quebra de aliança era imperdoável na antiguidade. Mas a proteção divina estava sobre ele e sobre os seus, o que lhes garantiu a sobrevivência.
Segundo, a intocabilidade bíblica aos ungidos, se aplicada aos dias de hoje, se limita à proteção contra mal físico (e nem sempre, já que muitos foram e serão martirizados por amor ao Evangelho!), mas em momento algum concede ao ungido qualquer imunidade em relação a críticas por suas atitudes e idéias equivocadas. Davi, nas duas ocasiões que poupou a vida de Saul, não ousou tocá-lo fisicamente, machucando-o ou matando-o, mas apontou seus erros diante de todos os presentes (1 Sm 24:8-15; 26:13-25). Um ungido de Deus (e na verdade nenhum cristão, independentemente de unção) jamais deve ser morto ou agredido, mas pode ser questionado, pode ter suas ações, idéias e atitudes analisadas à luz das Escrituras e condenadas, caso estejam incorrendo em erro. Sempre no campo das ideias e do debate, e nunca além disto.
Terceiro, em nenhum momento, quer no Antigo ou no Novo Testamento, a Escritura associa a condição de ungido de Deus a qualquer característica de infalível. Somente o dogma católico romano concede ao seu líder supremo, o Papa, a condição de infalibilidade. No meio protestante, não reconhecemos tal dogma, e nem o concedemos a nenhum dos nossos líderes, por mais privilegiados que sejam. Davi compreendia que o fato de Saul ser ungido de Deus não o impedia de cometer erros, e nem proibia ninguém de chamar a sua atenção e repreendê-lo, na tentativa de levá-lo a corrigir suas atitudes erradas. E o texto sagrado o mostra por duas vezes fazendo esta correção verbal a Saul. Nem mesmo a tentativa de Abner de impedir que ele erguesse sua voz surtiu efeito (1 Sm 26:14), mas Davi não deixou de proclamar os erros do ungido, evidentemente de forma respeitosa e educada, mas contundente, chamando-lhe a atenção para seus erros e chamando-o ao arrependimento e mudança de atitudes.
Quarto, questionem-se idéias e ações, e não pessoas. Não podemos em nenhum momento nos posicionar contra o “Pastor Fulano”, e sim contra suas idéias, doutrinas e ações erradas. O maior objetivo deverá ser a correção das atitudes erradas e doutrinas estranhas pregadas pelo “Pastor Fulano”, e não a execração pública da pessoa. Ademais, não é possível que TODAS as suas atitudes estejam completamente erradas: certamente, o “Pastor Fulano” está trabalhando no Reino de Deus, ganhando almas para Jesus, etc. Seu erro pode ser o ensino de uma doutrina errada. E é exatamente contra esta doutrina que devemos nos levantar, e não contra o pastor ou a obra que ele tem desempenhado. Ressaltemos e combatamos o erro, mas analisemos os acertos. Evidentemente, acertos não justificam erros, mas igualmente erros não desqualificam acertos. Todas as facetas devem ser levadas em conta para que não desprezemos ou excomunguemos pessoas, e sim ações erradas.
Quinto, aprendamos com João Batista que não importa a posição do homem; nossa obrigação para com Deus é defender a fé que uma vez nos foi entregue (Jd 2), não importa o que tenhamos que fazer, a quem tenhamos que questionar, o que venhamos a perder, inclusive a nossa própria cabeça (Mt 14:1-12). João não se intimidou diante da posição do rei Herodes, mas corajosamente apontou-lhe os erros, mesmo sabendo que isto poderia custar-lhe a liberdade e a vida. Paulo também não se calou diante dos erros de Pedro, apesar de este ser inegavelmente uma coluna da igreja; contudo, Pedro estava agindo de forma errada, e Paulo não se omitiu em relação a este erro, antes repreendeu a Pedro na presença dos demais (Gl 2:11-14). Em relação a isto, chamamos a atenção para a omissão dos crentes nos dias de hoje. Muitos, com receio de “tocar nos ungidos” omitem-se na defesa da fé genuína. Outros, assumem a posição de Abner, defendendo os “ungidos” com unhas e dentes sem ao menos confrontarem as suas doutrinas, práticas e condutas com a Escritura, como bem faziam os crentes de Beréia (At 17.11). Com estas atitudes, os omissos demonstram que valorizam muito mais as pessoas e suas posições que a Palavra de Deus e a sã doutrina. Graças a esta omissão e/ou a esta defesa cega, os “ungidos” insistem em proliferar falsas doutrinas e práticas erradas em nosso meio. Devemos ter a mesma postura diante da defesa da sã doutrina, nos indignando contra distorções do erro e reagindo diante das falsas doutrinárias e práticas espúrias inseridas no seio da igreja.
Finalmente, nenhum “ungido” está acima das Escrituras. O próprio Paulo, o apóstolo dos gentios, escritor de quase metade dos livros do Novo Testamento, deixou-nos uma orientação clara a respeito disto: “Mas, ainda que nós mesmos, ou um anjo do céu, vos anuncie outro evangelho, além do que já vos tenho anunciado, seja anátema” (Gl 1:8-9). Ele ainda nos orientou categoricamente a não ultrapassarmos o que está escrito (1 Co 4.6). Ora, se nem mesmo Paulo poderia ensinar um Evangelho distorcido e autoriza uma maldição sobre si próprio, quem somos nós, ou quem são estes “ungidos” que se julgam no direito de distorcer as Escrituras e as regras por elas dispostas para a vida cristã, e ainda de usurpar uma intocabilidade quem nem os apóstolos buscaram para si?
Os questionamentos sempre existiram e devem continuar existindo em nosso meio, numa forma salutar e evolutiva. Os pastores devem incentivar as críticas construtivas, e não abafá-las, numa atitude ditatorial. Um dos maiores objetivos de um pastor deve ser desenvolver nas suas ovelhas a prática da liberdade de opinião e o senso crítico, e não uma postura de passividade e submissão cega. A igreja e sua liderança, afinal de contas, não são perfeitas, e qualquer crítica construtiva que sirva para melhorá-las é válida e aceitável. Moisés aceitou crítica do sogro, e por meio dela melhorou o sistema judiciário de Israel. Os apóstolos aceitaram críticas, e instituíram o diaconato.
Os críticos,por sua vez, devem criticar e julgar de conformidade com a Palavra de Deus, e também devem estar abertos às réplicas, e ambas as partes prontas para reconhecer quando estiverem equivocados, mudando sua conduta. Contudo, as rebeliões, tão comuns nos dias atuais, devem, sim, ser combatidas e extirpadas de nosso meio. E igualmente abolida esta nociva prática de tornar os pastores e líderes intocáveis e imunes a qualquer questionamento, para o bem do Corpo de Cristo.
Encerro transcrevendo as palavras do Pr. Ciro Sanches Zibordi, discorrendo sobre o mesmo tema em seu blog: “Quanto aos que, diante do exposto, preferirem continuar dizendo — presunçosamente e sem nenhuma reflexão — ‘Não toqueis nos meus ungidos’, dedico-lhes outro enunciado bíblico: ‘Não ultrapasseis o que está escrito’ (1 Co 4.6). Caso queiram aplicar a si mesmos a primeira frase, que cumpram antes a segunda!”.
Muito boa apologia meu irmão. Precisamos formar um batalhão para vencermos os "ungidões do últimos dias"
ResponderExcluirQue Deus lhe conceda mais e mais sabedoria.