quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

UMA RESPOSTA AO ALEXANDRINO: Uma Réplica em Defesa de Sob os céus da Escócia

O tão anunciado artigo sobre o livro “Sob os céus da Escócia (2015)” da lavra do Rev. Alan Renê de Lima foi finalmente publicado. Em primeiro lugar, analisando particularmente seu conteúdo, tive a impressão (isso só percebe quem conhece o livro) que o articulista leu a obra, mas não entendeu sua proposta. Além do mais, que ele não tenha gostado do livro isso restou claramente evidenciado e é até um direito que lhe assiste. Por outro lado, e com máxima distinção, igualmente evidente que não o entendeu. Todavia, como ele se esforça para descredibilizar o livro, sobretudo no tocante às fontes, julgo ser interessante logo de início tecer algumas considerações a respeito. Portanto, afirmações equivocadas de menor gravidade, como minha qualificação como ministro da Igreja Episcopal Carismática, serão deixadas de lado.

O articulista parece estranhar não apenas as fontes, mas igualmente os eventos envolvendo profecia preditiva, curas inexplicáveis e ressurreições informados no livro. Com efeito, todos os relatos carreados em Sob os céus da Escócia, são registros históricos extraídos de fontes reformadas e calvinistas, escritas por autores igualmente reformados e calvinistas. Gente séria que angariou reputação ilibadíssima, tais como John Howie, Theodore Beza, Robert Fleming, London Gardner, Patrick Hamilton, Peter Hume Brown, Patryck Walker, Alexander Smellie, et al. Todavia o articulista manifesta seu inconformismo talvez porque tais relatos confrontem sua posição teológica. As fontes das quais me utilizo, foram utilizadas pelos Drs. Lloyd-Jones, bem como pelo Dr. Ian Murray em The Puritan Hope (Banner of Truth, 1971) e outros tantos escritores reformados. O uso de tais relatos não ficou restrito aos séculos 16, 17 e 18. Em um de seus livros, Lloyd-Jones diz que

houve um homem chamado John Welsh que era tão reformado e tão calvinista como seu sogro, John Knox. Foi dito dele - e há boa prova disso num livro escrito por um escritor igualmente reformado e calvinista - que, quando ele residia no sul da França, foi usado para ressuscitar uma mulher dentre os mortos. [...] Ou considerando o dom de profecia, façamos uso da ilustração. Tome de novo o caso de John Welsh, ou de outro grande ministro da Escócia, Alexandre Peden. Se vocês lerem as biografias desses homens, verão que eles puderam proferir profecias de eventos que aconteceriam na Escócia - e que de fato aconteceram.[1]

A diferença substancial entre os apontamentos do Dr. Lloyd-Jones e os apresentados em Sob os céus da Escócia é que dou nome aos protagonistas, enquanto Jones apenas menciona fatos. Ele fala da ressureição, enquanto eu, informo ao leitor outros dados históricos como detalhes que o envolvem, à semelhança da ressurreição do Lorde Ochiltree, pelas mãos de Welsh.[2] Dou vida e precisão histórica aos relatos citando profecias nos ministérios de John Welsh, John Knox, George Wishart, Alexander Peden, John Davidson, Richard Cameron, Robert Bruce e John Semple. São indubitavelmente oito respeitáveis ministros. Não há na minha lista nenhum louco ou fanático. Todos homens que amavam a Palavra e pregavam-na com todo ardor. Contudo, profetizaram coisas impressionantes, incluindo detalhes sobre as mortes de determinadas pessoas com aquela precisão cirúrgica que chega a causar assombro.

Além do mais, quando isso foi possível, fiz uso de mais de uma fonte. Tome como exemplo o relato sobre uma ocorrência de profecia com João Calvino registrada por Beza e que foi publicada na biografia do principal reformador de Genebra. Além de apontar o registro de Thomas Boys (1832), informo ao leitor que o mesmo relato se encontra na obra de London Gardner (1744), bem como numa tradução do latim para o inglês publicada em 1844 pela Calvin Translation Society. Foi a partir desse tipo de obra altamente qualificada que pesquisamos. Contudo, o articulista tem insistido “ad nauseam”, em atacar a credibilidade afirmando categoricamente que o livro é mal pesquisado. O que não é verdade.

O articulista teve dificuldade para localizar fontes e protesta logo de início que a confusão se dá por uma suposta imperícia minha em alocar as referências seguindo rigor das normas científicas:

“Um exemplo disso pode ser percebido no fato de que, ao tratar do alegado continuísmo do escocês George Gillespie nenhuma fonte primária é apresentada, com exceção da menção a dois tratados sobre o dom de profecia no Novo Testamento (p. 65, nota de rodapé nº 15). Não há nenhuma declaração do próprio Gillespie. Há apenas testemunhos oriundos de biografias. Na verdade, as únicas palavras de Gillespie documentadas (p. 64) são tomadas a partir de uma fonte secundária difícil de identificar, dada a maneira equivocada como as notas de rodapé estão organizadas do ponto de vista da metodologia da pesquisa científica.

Quanto ao protesto acima, explico. As referências de nº 13 e 15, estão jungidas à 33 que na página 58 menciona a obra sobre a qual eu extraio as citações de Gillespie. É verdade de fato que Gillespie faz um apanhado de trabalhos inclusive da Patrística tais como Crisóstomo, mas o faz afirmando claramente que tais testemunhos são tomados como sua posição particular e conclui dizendo que ele próprio testemunhara ocorrências proféticas em seus dias:

“E agora, tendo ocasião, eu tenho que dizer isto, para a glória de Deus, havia na Igreja da Escócia, antes do tempo da nossa primeira Reforma e depois da Reforma, em ambas as ocasiões tais homens extraordinários, superiores a simples pastores e mestres, nivelados aos santos profetas recebendo revelações extraordinárias de Deus e predizendo diversas coisas incomuns e acontecimentos notáveis, as quais aconteciam promovendo grande admiração em todos aqueles que os conheciam em particular.”( p. 64, nota 13).

A propósito, a nota de rodapé de número 15 na página 65, tão somente descreve o título dos ensaios sobre a matéria escritos por Gillespie em Treatise of Miscelany Questions, parte de Works of George Gillespie – One of the Commissioners from Scotland to the Westminster Assembly. Contudo, tais ensaios são mencionados apenas como informação complementar. Caso o leitor deseje averiguar e pesquisar mais acuradamente. Eu lançarei mão deles no volume 2. Sobre a obra mencionada acima, a edição que tenho é um reprint do original de 1644 e publicado pela Still Waters em 1991. A propósito, a citação acima é extraída da obra adrede mencionada especificamente da pág. 30 de Treatise of Miscelany Questions. Seria esta fonte marginal ou sem credibilidade? O esforço do articulista demonstra-se mais como o desejo de confundir a mente do leitor, do que propriamente auxiliá-lo.

Ele também me acusa de ter afirmado o viés continuísta da CFW, quando em nenhuma das páginas do livro o tenha feito. Nem tampouco afirmei categoricamente que qualquer dos puritanos citados fosse continuísta. Disse que a CFW é um documento redigido com caráter conciliatório. Segundo eu o Dr. Milne entendemos, sua concepção se presta à articulação com fins políticos de pacificação, necessária em um cenário religioso, civil e político bastante conturbado. Neste sentido, não importa o que cada puritano em particular escreveu em defesa de um cessacionismo específico ou de um continuísmo incipiente. Importa é que o enunciado da Confissão apenas se opõe tacitamente quanto à possibilidade de novas revelações com força de mandamentos universais para a Igreja. Este propósito da profecia, sustento no livro, cessou. A que permanece em nossos dias, também sustento no livro, é de caráter extraordinário. Assim sendo, eu não consigo entender que o articulista tenha interpretado como completo revisionismo histórico o simples apontamento através da história da mentalidades quanto ao surgimento do cessacionismo atual como uma excrescência teológica.

Por conseguinte, para quem alega possuir credenciais acadêmicas e treinamento teológico formal, o articulista se autodenuncia quando não compreende evidências muitos simples, que podem ser deduzidas facilmente com uma leitura cuidadosa. Tome o exemplo quando ele diz que eu não me preocupo em apresentar uma definição sobre qual seja o cessacionismo confrontado na obra, e me acusa de atacar tão somente o sistema quando lhe associo ao ateísmo bem como ao liberalismo de Bultmann. No entanto, eu apenas usei a mesma “régua” utilizada por MacArthur quando este mediu o continuísmo – sem conceitua-lo devidamente, diga-se de passagem. “Com a medida que medirdes, vos medirão também”, disse nosso Senhor. Pois bem, no livro Os Carismáticos (Fiel, 1995), MacArthur a certa altura na página 61 defende a ideia de que a teologia que “possa resultar de nossa experiência não é originária do movimento carismático. Ironicamente, diversos elementos, todos anti-cristãos, têm contribuído para que esse conceito de teologia experimental cresça: Existencialismo, Humanismo e Paganismo.”. Então o continuísmo pode ser acusado injustamente de possuir raízes no paganismo, enquanto o cessacionismo não pode sê-lo por irmanar-se a pressupostos anti-sobrenaturalistas ateístas ou liberais? Se MacArthur pode proceder como demonstrado em julgamento particular, seus opositores podem fazê-lo ao refutar o tipo de cessacionismo que ele abraça. Por outro lado, está tão claro que eu trabalho o cessacionismo mais vulgarmente conhecido e divulgado aqui no Brasil, que julguei desnecessário expor os detalhes das variações próprias do sistema. Ora, se na obra eu dialogo com as teses de cessacionistas tais como Richard Gaffin (p.175ss), Sinclair Ferguson (p. 196), Brian Schwertley (p.184), MacArthur (p. 157ss), Palmer Robertson (p.171), eu realmente necessito esclarecer contra qual cessacionismo me insurjo?

Ele também afirma que eu sustento alegação de que George Gillespie era continuísta. Por outro lado, há uma afirmação muito clara carreada no livro que não foi transcrita no artigo, onde digo:

Ainda que não seja provada sua aliança com o continuísmo, Gillespie se rendeu aos fatos e os explicou da única forma que poderia tê-los explicado: afirmando que, tendo sido encerrado o cânon bíblico, Deus falou extraordinariamente através de instrumentos humanos, revelando fatos impressionantes que se cumpriram para espanto de toda nação escocesa” (p.65). [grifo meu]

Onde estaria minha alegação de que Gillespie era continuísta? O articulista poderia ter transcrito algum trecho do livro com a dita alegação, o que não ocorreu. Não satisfeito, afirma que além de Gillespie, rotulei Calvino, Samuel Rutherford e Jonathan Edwards igualmente como continuístas. Ora, vejamos se procede a afirmação. Na página 57 após informar sobre determinada ocorrência profética com Calvino, digo o que segue: “Neste sentido, é possível admitir a possibilidade de clarividência sem ser necessariamente um carismático. E prossigo dizendo que “a despeito do que Calvino tenha escrito dentro de uma visão pessoal sobre pontos assumidamente controversos, ou sobre textos em particular, foi posto à prova, conforme demonstrado na narrativa há pouco citada e vista na sua biografia escrita por Beza, qual seja, que ocorrências miraculosas não foram completamente excluídas nem do seu credo nem da sua experiência” (p.58). Na página 94, analisando algumas ocorrências no ministério de George Wishart (1513-1546), assevero: “É preciso que se diga que tais reuniões não eram ajuntamentos em busca novas revelações proféticas. O povo juntava-se para ouvir atentamente a exposição bíblica”. E mais adiante, na página 96, ainda sobre ele, afirmo: “As profecias aqui registradas não eram o norte de seu ministério. Sua função como pregador da Palavra inspirada era a atividade em que se dedicava. Pregar as Escrituras com fidelidade de maneira a instruir o povo em todo desígnio de Deus era seu alicerce ministerial. Mas isto não o impediu de se dedicar à oração e de ser canal da vocalização profética em seu tempo.” Já no capítulo onde analiso as profecias de John Knox (1505-1572), na página 106, registro minha impressão acerca de um relato do próprio em que ele afirma que suas esperanças “não repousam em seu poder profético, porque este poder estava sujeito à cessação. Sua confiança está alicerçada na Palavra revelada, ainda que ele seja difusor da anunciação de fatos estranhos e incomuns em seus dias”. E desta forma, sigo no decorrer do livro inteiro fazendo afirmações semelhantes. Assim sendo, quem de fato usa textos de maneira dogmaticamente seletiva? O autor do artigo somente confirma que se utiliza da máxima de Lenin: “Acuse seus adversários daquilo que você faz; chame-os daquilo que você é.”

Quanto à minha interpretação acerca das linhas gerais da Confissão de Fé, bem como da Assembleia que a redigiu, o articulista omite expressões centrais de meu raciocínio e induz o leitor de sua crítica a erro. Ele pinça determinada afirmação particular para dizer que a linha de pesquisa empreendida no livro sugere que os delegados de Westminster combatiam tão somente o romanismo. E omite do contexto uma palavra crucial para o entendimento de meu raciocínio. Na transcrição abaixo, o uso da expressão “por exemplo” por si só explica que meu intento é dizer que a prática do comércio de indulgências promovida pela ICAR, era “um dos” problemas. Apontar “um dos problemas”, não é o mesmo que afirmar haver um “único”:

Os teólogos de Westminster estavam se opondo claramente à tradição romanista das indulgências, por exemplo. Neste sentido, ninguém poderia se apresentar como portador de nova revelação divina referente à salvação humana, tendo em vista o assentamento definitivo de doutrina a respeito. (p.36).

Diferente do afirmado, eu não situo a polêmica como direcionada única e exclusivamente à Igreja de Roma como sugerido. A propósito, mantenho a mesma percepção de Robert Letham e do Derek Thomas ao apontar a disputa como antiga. O conflito com os romanistas e anabatistas é denunciado por mim na página 49 Sob os céus da Escócia, da seguinte forma:

Ele também pronunciou-se contra o erro daqueles aos quais chamava de entusiastas, que relativizavam as Escrituras e a autoridade da Igreja ao apelarem para supostas revelações diretas e especiais de Deus. Não obstante, Calvino os combatia porque, em geral, os ensinos dos entusiastas referentes às reivindicadas manifestações de revelação eram contrários às Escrituras Sagradas. O conteúdo dos ensinos contrariava a Bíblia e, portanto, colocavam em xeque as revelações canônicas. [... Neste caso, para Calvino, seria um erro conceber que Deus entrasse em demanda contraditória contra si próprio. Em ligeira síntese, Calvino combate a pretensa autoridade do entusiasta de seu tempo, sobretudo porque seus ensinos contrariavam a Bíblia e isto era inconcebível para o reformador.

Antes, no entanto, ainda na página 26, trago ao conhecimento do leitor quais seriam tais ensinos e revelações, ao citar, como exemplo, o conteúdo das pregações apocalípticas de Melchor Hoffman.  E ainda quanto aos quakers, não merece prosperar a alegação do articulista de que os conflitos com eles se davam porque entenderam a CFW como cessacionista. A refrega era na busca pela apropriada definição sobre o aspecto ordinário/extraordinário da revelação imediata. O que eles não aceitavam era que as comunicações do Espírito com o espírito do crente fossem confinadas ao status de extraordinárias. Para os quakers, essa comunicação tinha caráter essencialmente ordinário. John Howe teceu considerações importantíssimas a este respeito em The Whole Works of John Howe, estabelecendo distinções entre revelação sobrenatural imediata, mediata, profecia, iluminação, premonições, etc.. Samuel Rutherford estabeleceu a revelação sobrenatural em quatro categorias distintas (p. 69), a saber: 1) Revelação profética; 2) Revelação especial somente ao eleito; 3) Revelação de alguns fatos estranhos a homens piedosos; 4) Revelação falsa e satânica.[3] Com isto, buscava-se preservar as revelações canônicas na formação da Escritura, de outras manifestações que se mostravam recorrentes no século 17. Eu avalio as conclusões de Rutherford com muita seriedade porque entendo como o Dr. Poythress que ele foi efetivamente o líder “na orientação teológica dos assuntos mais controvertidos discutidos na Assembleia” (p.68). Sua posição sobre o tema foi acatada, qual seja, que revelação sobrenatural, como evento extraordinário, pode acontecer mesmo com o encerramento do cânon. Além dos dois, William Bridge fez o mesmo especialmente no sermão Scripture light the most sure light. A ideia era separar o joio do trigo, visto que muitos grupos místicos reclamavam possuir revelações diretas da parte de Deus e causavam toda sorte de confusão com vários ensinos contrários à verdade revelada inclusive pelo próprio Cristo. Por isso o uso, por exemplo, do texto de Hebreus 1.1 na CFW.

Mas para entender melhor o conflito envolvendo os quakers, é de bom alvitre ouvi-los. Robert Barclay (1648-1690), importante teólogo do movimento, apelou para o texto de que “ninguém conhece o Filho senão o Pai; e ninguém conhece o Pai a não ser o Filho, e aquele a quem o Filho o desejar revelar” (Mt 11.27. KJV). Para quakers proeminentes, esta revelação do Filho se dá “no” e “pelo” Espírito, portanto, o testemunho deste é o único meio pelo qual o cristão pode alcançar o verdadeiro conhecimento de Deus. A cizânia se desenrolava no sentido de que para estes a Escritura não poderia ser única regra de fé e prática, mas o Espírito Santo, revelando-se internamente ao crente. Responder a este padrão subjetivo foi o motriz dos esforços puritanos para assentar a cláusula de que a Bíblia, mediada pelo Espírito era de fato a fonte pela qual todas as demandas deveriam ser julgadas. Este ponto da disputa restou evidente na conhecida Confissão de Fé Quaker The Confession of the Society of Friends, Commonly Called Quakers (1675).

Barclay também sugere que a ferrenha oposição dos quakers em relação aos puritanos girava em torno de uma exacerbada busca por conhecimento acadêmico. Esta busca, segundo ele, não avalizava o verdadeiro conhecimento de Deus nem era garantia de espiritualidade profunda. Defende também que embora a Escritura fosse autoritativa, era um fundamento secundário e subordinado ao Espírito. Este é o guia e principal líder segundo o qual os santos são levados à verdade. Para os quakers, o Espírito é superior e não se subordina à Palavra. Por sua vez, George Fox (1624-1691) afirmou o Cristo como o Logos divino, o Verbo encarnado, e a Escritura como palavras de Deus. Fox sustentava a superioridade de Cristo em relação à Escritura.[4] Em síntese, a Escritura são palavras de Deus, mas não é Deus.

A discussão com os quakers e outros místicos não estava associada necessariamente quanto à possibilidade de revelação extra-bíblica, mas em definir este tipo de revelação como extraordinária, ao invés de ordinária como desejavam os quakers. Mas este detalhe foi expresso na Confissão de maneira subjacente.  

Os quakers também foram combatidos pelos puritanos por que algumas das conclusões eram flagrantemente contraditórias, não apenas em relação à Escritura mas às próprias teses que defendiam. Tome como exemplo uma declaração confusa de Barclay ao afirmar que “a revelação interna não contradiz as Escrituras e nem a correta e sã razão”, para logo em seguida afirmar que “a revelação não pode ser julgada pelas Escrituras, nem pela sã e correta razão.” Os puritanos disputavam a própria existência de revelações imediatas nos moldes quakeristas. Para eles, a ocorrência de profecias não era mais possível de acontecer ordinariamente como no NT. Extraordinariamente, talvez.

No entanto, o articulista alega que a interpretação dos quakers sobre o que se redigiu no capítulo primeiro da CFW é crucial para entender que os divines estavam de fato falando irrestritamente de cessação revelacional imediata. Parece-me claro que Richard Cameron e outros tantos puritanos nem se deram conta que a CFW era cessacionista nestes moldes, visto que em anos posteriores à publicação verificou-se atividade profética entre eles. Uma das profecias, pronunciada por Cameron, é citada na página 125 de Sob os céus da Escócia, muitos anos depois do encerramento de Westminster.

O articulista fez uso da obra de David Dickson, sob a premissa de que este possui autoridade para firmar entendimento definitivo sobre a CFW por ser dela contemporâneo, e, portanto, familiarizado com seu contexto religioso, bem como com as suas conclusões. Convém perguntar: Os quakers também não eram contemporâneos e também não estavam familiarizados com o contexto? Os anabatistas, seekers, et al., também não? No entanto, ele traz ao nosso conhecimento a obra intitulada Praelectiones in Confessionem Fidei relatando impressões sobre um tipo rigoroso de cessacionismo puritano esposado por Dickson. Valer-se de Êxodo 17.14 para afirmar categoricamente que quanto aos modos de revelação “[...] todos findaram com a escrita” (Êx 17:14), me parece um exagero típico. Onde tal “indício” escriturístico pode ser utilizado apropriadamente como prova de cessação revelacional ad eternum? Apenas por que o Senhor ordenou que se registrasse um fato e que este fato memorial fosse lido para Josué? Usar este tipo de exemplo para determinar a cessação revelacional definitiva é o mesmo que apresentar uma faca como evidência de um homicídio praticado com arma de fogo.

A teologia reformada não é tão melindrosa como a erudição cessacionista deseja nos fazer crer. Sobre a questão que envolve a natureza do NT, por exemplo, Calvino sobre o texto de 2Tm 3.17, disse:

Ao falar 'Escritura' significa que Paulo está falando simplesmente do que chamamos de Antigo Testamento; como ele pode dizer que pode fazer um homem perfeito? Se é assim, o que foi adicionado mais tarde através dos Apóstolos parece ser supérfluo. Minha resposta é que, tanto quanto a substância da Escritura está em causa, nada foi acrescentado. Os escritos dos apóstolos não contém nada além de uma simples e natural explicação da Lei e dos profetas, juntamente com uma descrição clara das coisas nele expressas.[5]

Por conseguinte, o articulista se socorre em Robert Letham, corroborando a tese de que “a questão da revelação especial não foi alvo de discórdia que demandasse uma acomodação de opiniões divergentes.” E prossegue argumentando que “houve acordo generalizado sobre o seu conteúdo”. Mas não me ocorre tenha eu afirmado no livro que havia dissensão no Concílio sobre o conteúdo da revelação especial conforme registrado na Bíblia. Sugere também que os debates na Assembleia de Westminster mantinham-se sob um “clima ameno”, sem maiores controvérsias e polêmicas. Ora, se John Milton, assim como erastianos e representantes do Parlamento (alguns descrentes?) estavam presentes, dizer que não houve polêmica é ignorar a natureza dos conflitos humanos. John Milton mesmo é conhecido por uma posição controvertida sobre o divórcio que foi duramente rechaçada pela Assembleia. Mas ouçamos o Dr. Milne, sobre o background daqueles delegados:

“Eles vieram para a Assembleia com um pano de fundo profundamente influenciado por um protestantismo polêmico que deve muito a esses estudiosos como Martinho Lutero, João Calvino, Zwinglio Huldrich, Henry Bullinger e Pedro Mártir Vermigly. Enquanto João Calvino foi sem dúvida a força dominante entre os puritanos e os escoceses ele não era de modo algum a única. Além disso, o “Calvinismo” foi representado por um espectro de opiniões teológicas dentro de parâmetros reconhecíveis. Isso ficou evidente na própria Assembleia, onde os debates sobre a doutrina da expiação foram expostos radicalmente com diferentes interpretações da sua extensão e aplicação. Não devemos supor que porque Calvino manteve certos pontos de vista sobre a cessação da revelação sobrenatural, estes foram necessariamente espelhados nos documentos da Assembleia de Westminster.”[6]

Quanto aos comentários sobre o termo “salvação” que uso para revisar a majoritária interpretação da Confissão, o articulista subscreve que entre os puritanos havia aplicação diversa. A tese do Dr. Milne está correta, no entanto o articulista revela que não apreendeu acertadamente seu escopo. Ou seja, ele busca provar que o termo “salvação” expresso no capítulo I da CFW, tem uma abrangência tal que se torna difícil saber qual tipo de salvação os delegados de Westminster tinham em mente. E que em relação a isto, tanto minha análise, quanto minha conclusão laboram em erro. A questão é que meu ponto trata especificamente do termo e seu uso no capítulo I; e mesmo este uso tem conexão direta com os demais ao longo do documento (2.1; 3.5,6). Não há conflito entre a minha tese e a do Dr. Garnet Milne. Ou seja, ainda que o termo “salvação” pudesse ter significado diverso na CFW, no capítulo primeiro ele se relaciona essencialmente com soteriologia e com uma teologia escatológica do Reino mais abrangente com referência ao seu aspecto primordialmente espiritual. Berkhof diz que o Reino de Deus é representado não como temporal, mas como um reino eterno (Is 9.7; Dn 7.14; Hb 1.8; 2Pe 1.11). Assim, entrar no Reino do futuro é entrar num eterno estado (Mt 7.21-22), é entrar na vida (Mt 18.8-9), é ser salvo (Mc 10.25-26)”.[7] [Grifo nosso].

É flagrante neste sentido que o articulista parece não haver compreendido a conclusão do Dr. Milne. Este, quando menciona os aspectos temporais da salvação, avaliados sob o crivo da teologia do Reino de Deus mantém entendimento próximo ao meu. Contudo, sobre isto, o articulista diz:

“Milne observa ainda que uma pesquisa nos Padrões de Westminster “revela que o substantivo, as formas verbais e o conceito de ‘salvação’ aparecem muitas vezes ao longo desses documentos, mas a definição do conceito não é uniforme”.[8] Como evidência dessa afirmação creio que alguns exemplos possam ser apresentados. No Capítulo 2.1, sobre Deus e a Santíssima Trindade, salvação é entendida como perdão dos pecados e libertação da justa retribuição da ira de Deus que não inocenta o culpado. Em 3.5, sobre o Eterno Decreto de Deus, salvação é conceituada como eleição em Cristo Jesus para a glória eterna. Já no parágrafo 6 desse mesmo capítulo os elementos dessa salvação são apresentados, a saber: “santificação, justificação, obediência, santidade, adoção como filhos e boas obras”.[9] No caso, salvação compreende toda a Ordo Salutis. Milne conclui a sua investigação sobre o sentido de “salvação” na CFW afirmando: “Dentro dos capítulos da CFW nós encontramos evidência interna para uma ampla definição de salvação que transcende redenção pessoal ou salvação escatológica e que oferece ao crente benefícios que incluem bênçãos temporais”.

Agora, pedindo licença ao articulista, indago: “Perdão dos pecados”, “libertação da justa retribuição da ira de Deus que não inocenta o culpado” (uso do termo salvação na CFW 2.1), “eleição em Cristo para a glória eterna” (uso em CFW 3.5), ou, “santificação”, “justificação”, “obediência”, “santidade”, “adoção como filhos e boas obras” não representam a mesma coisa? (CFW 3.6). Só quem é salvo, é justificado, obedece, santifica-se, tem o perdão dos pecados e fica livre da justa retribuição da ira de Deus que não inocenta o culpado. Ora, se dizemos que alguém foi eleito em Cristo para a glória eterna, certamente teremos dito que ele foi o quê, senão salvo? Ou, se afirmarmos que alguém foi liberto da justa retribuição da ira de Deus, estaremos afirmando o quê? Que este alguém foi salvo, óbvio. E se eu assevero que um pecador foi justificado, não concluo que tal justificação se dá para que a salvação (como benção temporal e eterna) se estabeleça (Rm 8.29-30)? Neste sentido é que o capítulo 14 da CFW diz que salvar-se é “aceitar e receber a Cristo e descansar só nele para a justificação, santificação e vida eterna, isso em virtude do pacto da graça”.

O que o Dr. Milne sugere é que o termo “salvação” para os puritanos pode ser abrangente em certo sentido, mas está ligado a uma única ideia central (ordo salutis). E, evidente que transcende o ponto de redenção pessoal (ou particular). Isto por que, na Escritura, salvação ora é mencionada a indivíduos, ora a povos, nações, etc. Ora se fala em redenção de povos, ora, de pessoas em particular. Basta uma lida em Romanos 8-9 para compreender isso. Além do mais, trata-se de redenção escatológica tanto quanto se trata de salvação do pecado estrutural que mantém influência neste mundo tenebroso. Salva-se também aquele que se opõe à esta estrutura e se rende ao padrão do Reino de Deus em confronto com o mundo que jaz no maligno. “Salvo” pode considerar-se aquele que não se conforma com este século (Rm 8), e é neste sentido que, ao meu ver, a redenção assume também aspecto de benção temporal apontado por Milne. Todavia, o articulista se esforça inutilmente no propósito de tentar nos fazer acreditar que existe diferença etimológica substancial entre “tire uma xerox” e “tire uma xérox”, quando “tenho sede de água” e “vou à sede da empresa” é que são realmente diferentes. A palavra “sede”, a depender do contexto e uso empreendido, assume conotação diametralmente distinta.

E quanto a este último ponto, ou seja, o fato do articulista não haver entendido o que o Dr. Milne escreveu, de certa forma revela uma dificuldade hermenêutica alimentada pela teologia dogmática. Em síntese, ele leu e não entendeu Sob os céus da Escócia, tanto quanto leu e não entendeu o livro do Dr. Milne.

Por derradeiro, cabe aqui uma pergunta, prezado leitor: Porque a Confissão de Fé de Westminster inicia com um capítulo sobre as Escrituras Sagradas? Você nunca parou para se perguntar a respeito? Natural seria que o primeiro capítulo reservasse espaço para tratar sobre ontologia divina. Sendo esta, a prática corriqueira, por que os teólogos de Westminster fizeram diferente? Penso que para registrar que estas tensões eram tão fortes e significativas que exigiram lugar de destaque e primazia nos debates. Mas este é um ponto que abordaremos no volume 2.





[1] Exposição sobre Capítulo 12 de Romanos. O comportamento Cristão. Editora PES. 2003, p. 283.
[2] A propósito, o relato de Lloyd-Jones combinado com o meu, aponta que fora, duas ressurreições operadas a partir do ministério de Welsh
[3] RUTHERFORD, Samuel. A Survey of Spiritual Antichrist. London: Printed by F.D. & R.I for Andrew Grookeand, 1648, chap. vii of revelation and inspiration, p.39.
[4] FOX, George. The Works of George Fox. Philadelphia: M.T.C Gould, Journal, vol. i, 1831, p; 171.
[5] CALVINO, João. The Second Epistle of Paul the Apostle to the Corinthians and Epistles to Timothy, Titus and Philemon, eds. D.W Torrance, T.F. Torrance, trans. T.A. Smail, Vol. 1, Calvin's Commentaries. Grand Rapids: W.m B. Eerdmans Publishing Co., 1964.
[6] MILNE. Garnet Howard, The Westminster Confession of Faith and Cessation of Special Revelation. A Thesis submitted for the degree of Doctor of Philosophy at University of Otago, Dunedin, New Zealand, 2004, pp 44-45. Como minhas consultas se deram na própria tese do Dr. Garnet, encaminhada gentilmente por ele, e não no livro como o articulista, transcrevo ipsis literis o trecho como está na tese: B. Theological inheritance: “They came to the Assembly with a background profoundly influenced by a polemical Protestantism which owed much to such scholars as Martin Luther, John Calvin, Huldrich Zwingli, Henry Bullinger and Peter Martyr Vermigli. While John Calvin was arguably the dominant theological force among the Puritans and the Scots, he was by no means the only one. Furthermore, “Calvinism” was represented by a spectrum of theological opinions within recognizable parameters. This was evident at the Assembly itself, where debates on the doctrine of the atonement exposed radically different interpretations of its extent and application. We should not assume that because Calvin held certain views on the cessation of supernatural revelation, these were necessarily mirrored in the Westminster Assembly documents.”
[7] BERKHOF. Louis, Systematic Theology. Grand Rapids: Eerdmans, 1959, p. 708.