quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

"O DEUS ARMINIANO NÃO É O MESMO DEUS CALVINISTA!"

Dizei-me, vós que quereis estar debaixo de Spurgeon, não ouvis vós a Spurgeon?” (Gl 4:21 - paráfrase).

Alguns hiper-ultra-super-mega calvinistas tupiniquins estão lançando um ferrenho ataque contra arminianos, chegando ao extremo de afirmar em suas redes sociais que "o deus dos arminianos não é o mesmo Deus dos calvinistas" e que arminianos estão caminhando, graças a suas falsas e demoníacas doutrinas, a passos largos para o inferno. Citam, para embasar suas assertivas, o sermão AS BÊNÇÃOS DO PACTO, de Charles Spurgeon, e convocam os que pensam diferente a "aprender com Spurgeon que o Calvinismo É o Evangelho", ou que "o Evangelho É o Calvinismo"... 

No sermão supracitado, Spurgeon realmente disse:
Eu absolutamente não sirvo ao deus dos Arminianos! Eu não tenho nada a ver com ele e eu não me curvo diante do Baal que eles criaram! O deus dos Arminianos não é o meu deus, nem jamais o será! Eu não temo e nem tremo diante dele. Um deus mutável pode ser o deus para o Arminiano, mas ele não é o deus para mim. Meu Senhor não muda! (Spurgeon, AS BÊNÇÃOS DO PACTO,  http://zip.net/bjqMPd p. 11)
O que podemos dizer acerca disso?

Primeiro, devo esclarecer que meu objetivo com este artigo não é desmerecer o calvinismo, mas deixar claro aos hiper-calvinistas a sua loucura em invocar Spurgeon ou qualquer outro expoente calvinista para dar aulas de calvinismo COM desmoralização arminiana. Spurgeon foi um dos mais brilhantes calvinistas que já pisou este planeta, defendendo magistralmente sua linha de fé, mas reconhecendo que Deus igualmente elegera os arminianos para a salvação, embora não tenham a mesma visão calvinista. E mesmo que algum calvinista se julgue superior ao arminiano "por Deus ter-lhe dado melhor e maior revelação do Evangelho", é princípio do mesmo Evangelho que os fortes suportem (não no sentido de aturar, aguentar, mas dar suporte, ajudar, amparar) os mais fracos, inclusive em amor e tolerância, e jamais em ridicularização e desprezo. Estas duas últimas, não são absolutamente práticas cristãs, mas tem se tornado práticas de calvinistas e arminianos para com os que creem diferente, demonstrando o quão distantes se encontram do Evangelho!

Atrevo-me a publicar este artigo após testemunhar, em todas as redes sociais, grandes e terríveis ataques de calvinistas contra arminianos (e o inverso também tem ocorrido), com chacotas e ridicularizações, e até vociferações raivosas contra os mesmos. Frequentar páginas calvinistas constitui num grande risco para cardíacos e hipertensos, devido ao desrespeito gritante que presenciamos nestes cyberlocais. Há, evidentemente, honrosas exceções, e nem todo calvinista pode ser enquadrado como hiper-calvinista! Participo de algumas comunidades calvinistas, e nela encontro pessoas esclarecidas e respeitosas. Entretanto, existe um "calvinismo-quase-islâmico" que tem se alastrado no meio cibernético, e contaminado os arminianos. Sempre observei que os arminianos eram mais passivos e pacíficos, mas diante de tantos ataques e achincalhamentos que recebem diuturnamente, estão se tornando igualmente agressivos. Os excessos ocorrem de ambos os lados, e isto deve ser combatido. 

As agressões a que me refiro não partem de calvinistas sérios e equlibrados, mas de moleques que se consideram calvinistas sábios. Nunca leram nem o primeiro volume das Institutas, mas se acham sumidades no debate do tema! Entretanto, da mesma forma que Paulo ensina a "tapar a boca" dos falsos mestres (Tt 1), estes moleques precisam ser esclarecidos e calados. Um antigo patrão meu disse-me certa vez, cobertíssimo de razão, que "todo moleque tem um adulto que responde por ele", que consequentemente o corrige e o ensina a se comportar! Líderes calvinistas sérios, portanto, deveriam ensinar seus pupilos a, no mínimo, terem educação e respeito com ideias divergentes, e também a publicar, refutar, replicar e treplicar com ética, convivendo pacificamente nas questões secundárias

A história nos mostra que pessoas equilibradas sabem respeitar os opositores. John Wesley, arminiano, combateu no campo teológico seu antigo aliado Whitefield (antes arminiano, mas tornou-se calvinista), mas em seu funeral o homenageou como "um grande homem de Deus" (Fonte: http://zip.net/bpqNwM), e o próprio Spurgeon chegou a cogitar que, se fosse possível acrescer mais nomes ao Colegiado Apostólico escolhido pelo Senhor Jesus, Wesley (arminiano) seria um deles. John Wesley e George Whitefield tiveram uma diferença de teologia, com o Whitefield se tornando calvinista e associando-se à igreja Presbiteriana. Porém os dois permaneceram grandes amigos. Sabendo das suas diferenças doutrinárias, alguém certa vez perguntou a Whitefield (calvinista) se ele achava que iria ver o John Wesley (arminiano)  no céu. "Temo que não", ele respondeu, "ele estará tão perto do trono eterno, e nós tão distantes, que quase não veremos ele" (JOHN WESLEY, O VERDADEIRO AVIVAMENTO - http://goo.gl/gRKhWF). É terrível, mas elogios deste naipe, nos dias de hoje, partindo de um calvinista a um arminiano, provocariam uma revolta e protestos, além de chacotas, nos nossos meios hipercalvinistas!

Segundo, compreendamos a diferença entre questões colunares de nossa fé e questões secundárias. Defendamos com unhas e dentes, facas e espadas, as primeiras. Sejamos tolerantes com as segundas. A salvação SOMENTE por Cristo e pela fé nEle e em Sua obra redentora é colunar, mas a salvação por meio fé na eleição ou no livre arbítrio humano parece-nos secundária, pois as Escrituras deixam claro que dependemos absolutamente da primeira fé para sermos salvos, mas não da segunda (veremos adiante que o próprio Spurgeon admite que ambas se complementam). A crença na Pessoa do Espírito Santo é colunar, faz parte da maior parte dos Credos de fé que o Cristianismo possui, se não de todos; a crença na continuidade ou na cessação dos dons do mesmo Espírito é secundária. A crença e obediência ao batismo é colunar; a fórmula batismal, imersionista ou aspersionista, é secundária. Como saber o que é colunar e o que é secundário? Unindo leitura e estudo das Escrituras com MATURIDADE. O próprio Spurgeon afirma que Não existem somente algumas doutrinas pelas quais devemos dirigir nosso barco para norte, sul, leste ou oeste; à medida em que progredimos, começamos a aprender algo sobre o noroeste e o nordeste e tudo o mais que se situa entre os quatro pontos cardeais” (Spurgeon, UMA DEFESA DO CALVINISMO, p. 16).

Entendo que somos chamados à defesa da fé cristã. Entretanto, precisamos concentrar esta defesa de forma mais acirrada e inflexível nos princípios colunares da sã doutrina, deixando as questões secundárias ao crivo da interpretação pessoal de cada crente, obviamente defendendo nossas convicções, mas sem condenar os contrários. Afirmar, por exemplo, que um credobatista é mais cristão que um pedobatista, ou um imersionista é mais cristão que um aspersionista, parece-nos uma luta inglória e desnecessária, tendo em vista que as Escrituras permitem divagações teológicas sobre a fórmula batismal ou sobre a idade apropriada para se submeter a esta Ordenança. Abracemos nossas convicções secundárias e as defendamos, mas tenhamos equilíbrio e respeito com as divergências!

Mesmo como calvinista que sou, entendo que a crença na doutrina da eleição não é fundamental para levar um crente ao céu. O calvinista Augustus Nicodemus Lopes já disse: "Ainda bem que não dependemos da crença na soberania de Deus e na predestinação para sermos salvos!". O arminiano é tão eleito quanto o calvinista, e o calvinista usou seu arbítrio para adentrar em uma Igreja e receber a Cristo assim como o arminiano! Logo, arminianos foram eleitos para a salvação, e calvinistas se achegaram a Deus pelo livre arbítrio que possuem! Xingar um arminiano não desfaz sua filiação, assim como (desculpem o exemplo que vou usar) xingar um árbitro de futebol de "filho da p***" não transforma sua genitora em uma meretriz! Ridicularizar quem pensa diferente em questões secundárias também não vai anular-lhe a filiação divina. 

Sei que pregar o Evangelho sob a óptica das doutrinas da graça é meu dever de cristão reformado, mas eu preciso ter um mínimo de bom senso e "semancol" para compreender que algumas das doutrinas reformadas são secundárias. O crente não vai pro céu ou pro inferno, por exemplo, por ser cessaconista ou continuísta. É questão secundária.

Terceiro, não façamos de homens, por maiores e por mais "homens de Deus" que sejam ou tenham sido, e seus escritos, a nossa vara de medir! Esta "vara", o nosso cânon, são as Escrituras, e somente as Escrituras. Obviamente, alguns se destacam no entendimento e interpretação delas, como Calvino e o próprio Spurgeon, mas querer tratar suas obras e suas conclusões como apêndices escriturísticos em igual valor canônico, atribuindo-lhes inerrância e infalibilidade (como alguns mais radicais pretendem) e elegendo-as como expressões absolutas da verdade teológica não é prática cristã! Acima de tudo, Spurgeon era humano e falho como eu o sou. Seus escritos não são o cânon, não são infalíveis nem inerrantes! Nem os dele, nem os de Calvino, nem os de Armínio, nem os meus! Se Spurgeon citou tal frase em "AS BÊNÇÃOS DO PACTO" parece tê-la corrigido posteriormente em "UMA DEFESA DO CALVINISMO" (o que veremos logo a seguir); enquanto no primeiro ele afirma não servir ao deus dos arminianos, neste último admite que encontrará arminianos no céu. Isto não parece uma contradição? Como um falso deus daria salvação aos que o seguem? Como é possível um Baal conduzir seus seguidores ao céu? Qual dos dois sermões, portanto, está isento de erros? Aliás... eu ouso perguntar àquele que acha Spurgeon inerrante: você já fumou hoje o seu charuto para a glória de Deus? Saiba mais clicando AQUI.

Então, como nos sugeriram, vamos aprender com Spurgeon e seus escritos, e vamos ao apelo: "vós que seguis a Spurgeon, por que não o ouvem?"...

Comparemos o sermão AS BÊNÇÃOS DO PACTO com o sermão UMA DEFESA DO CALVINISMO, do mesmo autor. Vemos neste segundo, após uma defesa calorosa e apaixonada da doutrina calvinista, um reconhecimento respeitoso do seu autor a expoentes arminianos e uma conclusão surpreendente:

Não obstante, longe de mim sequer imaginar que entre os muros de Sião haja somente cristãos calvinistas ou que, aqueles que não compartilham das nossas idéias não serão salvos. As coisas mais terríveis têm sido ditas acerca de João Wesley, o príncipe dos arminianos modernos. Com relação a ele, só posso dizer que, embora eu deteste muitas das doutrinas que ele pregava, no entanto, em relação ao homem em si, eu o reverencio como a nenhum outro wesleyano e que, se tivéssemos que acrescentar dois apóstolos aos doze, creio que não existiriam dois homens mais capazes do que George Whitefield e João Wesley. O caráter de João Wesley permanece acima de qualquer suspeita em relação ao seu zelo, santidade, auto-sacrifício e comunhão com Deus; ele viveu muito acima do nível de vida dos cristãos comuns e foi um “dos quais o mundo não era digno”. Eu acredito que existem milhares de homens que não conseguem ver essas doutrinas ou que, pelo menos, não da forma como as coloquei, os quais, contudo, receberam a Cristo como seu Salvador e são tão queridos para o coração do Deus da graça, quanto os calvinistas mais ortodoxos, quer estejam dentro ou fora do céu... (Spurgeon, UMA DEFESA DO CALVINISMO, texto completo em http://migre.me/ozytt, p. 16 - É interessante notar que as notas de rodapé do editor calvinista afirmam que Spurgeon estava errado neste ponto.)

Neste parágrafo lemos Spurgeon admitir que Wesley, arminiano, era homem de Deus, chegando-o a colocá-lo na Galeria da Fé de Hb 11 ao afirmar que ele era um dos homens "dos quais o mundo não era digno". Embora um dia ele tenha afirmado que arminianos serviam a um deus diferente do dele, agora afirma que quem serve a este "deus" diferente do Deus calvinista também pode ser um homem de Deus e tem igual acesso à salvação! Isto soa como uma mea culpa, contrariando o que fora dito no sermão AS BÊNÇÃOS DO PACTO. Ou pensam os calvinistas ultrarradicais que em um sermão ele, Spurgeon, estava sendo divinamente inspirado, e no outro estava sendo espúrio?

Os verdadeiros calvinistas sabem, inclusive o bom Spurgeon, que os homens não dependem da crença na doutrina da eleição para adentrarem nas portas de Sião. São eleitos, mesmo sem o saber ou o admitir com as mesmas palavras calvinistas. Só os moleques, quer homens ou quer mulheres que se autodenominem sábios(as), desprezam os que foram comprados pelo sangue de Cristo, embora pensem diferente nas questões secundárias!

Mas prossigamos... Vejamos o que Spurgeon, no mesmo texto, diz em seguida sobre o antagonismo existente entre a predestinação e o livre arbítrio... Ele prossegue afirmando:

Não creio que haja diferenças entre o que creio e o que crêem os meus irmãos hiper-calvinistas. Difiro deles no que eles não crêem. Eu não acredito em menos coisas do que eles, e sim num pouco mais do que eles e, acredito que seja um pouco mais da verdade revelada nas Escrituras. Não existem somente algumas doutrinas pelas quais devemos dirigir nosso barco para norte, sul, leste ou oeste; à medida em que progredimos, começamos a aprender algo sobre o noroeste e o nordeste e tudo o mais que se situa entre os quatro pontos cardeais. O sistema de verdades revelado nas Escrituras não se constitui somente de uma linha reta, porém de duas; e nenhum homem poderá obter uma visão correta do evangelho até que ele saiba como olhar para as duas linhas simultaneamente. Por exemplo, eu leio num dos livros da Bíblia: “O Espírito e a noiva dizem: vem. E aquele que ouve diga: vem. Aquele que tem sede, venha, e quem quiser receba de graça a água da vida”. No entanto, sou ensinado em outra parte da mesma Palavra inspirada que “não é daquele que deseja, nem daquele que corre, mas de Deus que mostra misericórdia”. Eu vejo, por um lado, Deus presidindo em sua providência sobre todas as coisas e, no entanto, não posso deixar de ver também que o homem age como ele bem entende e que Deus tem permitido, em grande medida, que suas ações sejam governadas por seu livre-arbítrio. Entretanto, se eu declarasse que o homem tem liberdade suficiente para que pudesse agir sem o controle de Deus sobre suas atitudes, eu estaria muito próximo do ateísmo. Se, por outro lado, eu declarasse que Deus controla tudo de tal maneira que o homem deixa de ser livre o suficiente para ser responsável, eu estaria muito próximo do antinomianismo ou do fatalismo. Que Deus predestina e que o homem é responsável, são dois fatos que poucos podem ver claramente. Acredita-se que eles sejam incoerentes e contraditórios, mas não são. A falha está na nossa fraca avaliação. Duas verdades não podem ser contrárias uma a outra. Se, por um lado, eu sou ensinado em parte da Bíblia que todas as coisas foram predeterminadas, isso é verdade; se, por outro lado, eu encontro em outra parte da Bíblia, que o homem é responsável por seus atos, isso também é verdade. É somente a minha insensatez que me leva a imaginar que essas duas verdades poderiam ser contraditórias. Eu não creio que elas possam jamais ser caldeadas em nenhuma bigorna aqui na terra, mas certamente serão unidas na eternidade. Elas representam duas linhas quase paralelas, tão próximas, que, quando a mente humana tenta segui-las por uma grande distância, jamais descobrirá que elas são convergentes, porém na verdade elas são e elas se encontrarão em algum lugar na eternidade, num local próximo ao trono de Deus, do qual toda verdade procede. (Spurgeon, UMA DEFESA DO CALVINISMO, pp. 16-17).

Aprendi esta grande verdade quando estudei Teologia no Instituto Bíblico Betel Brasileiro, no fim da década de 1980, com a Missionária Lídia Almeida de Menezes (in memoriam), que gastou sua vida na formação de homens e mulheres para a obra missionária e pastoral. Ela sempre nos ensinava a não desprezarmos a realidade da soberania de Deus e da responsabilidade humana, por mais que nossa mente humana não compreendesse a aparente contradição entre ambas. Ela chegou a nos dizer certo dia algo mais ou menos como o que segue: "assim como vocês não compreendem a Trindade, pela limitação da mente humana para compreender o Deus Infinito, também não compreenderão estas duas verdades aparentemente contraditórias". Anos depois, o rev. Augustus Nicodemos Lopes, expoente do calvinismo brasileiro da atualidade, repete praticamente estas mesmas palavras em um vídeo bastante popular no Youtube, aonde trata do tema "Predestinação x Livre Arbítrio", que por sinal alguns hiper-ultra-super-mega calvinistas já tentaram me convencer que no vídeo ele estava apenas sendo irônico, quando na verdade ele trata o tema com bastante seriedade (embora use uma pitada de bom humor), discorrendo e reconhecendo o mesmo entendimento de Spurgeon do texto acima citado... É neste vídeo que ele admite que não seremos salvos por crermos na doutrina da eleição! Assistam, por favor...



O próprio texto de Spurgeon (que defende o calvinismo, e que é tantas vezes invocado para tentar afirmar o erro doutrinário dos arminianos) e os próprios expoentes calvinistas sérios e equilibrados reconhecem que arminianos entrarão na Cidade Santa pelas portas, e que a suposta contradição entre a soberania divina e a responsabilidade humana não é contradição nem heresia, mas antinômio! Logo, hastear no mais alto mastro das doutrinas cristãs a frase infeliz de Spurgeon que afirma que "o deus arminiano não é o Deus calvinista", e fazer disso um dos pilares da fé salvífica, e insistir que os arminianos estão perdidos por causa de suas convicções doutrinárias, e/ou outras acusações de mesmo naipe, nem é bíblico, nem spurgeônico, e muito menos calvinista! Se Spurgeon um dia o citou, em outro dia o desmentiu magistralmente!

Tratando sobre o tema, o bispo Walter McAlister, Pentecostal Reformado de linha teológica calvinista, demonstra a ação da soberania divina e do arbítrio humano:
Até Judas fez o que fez seguindo um propósito eterno de Deus. Jesus disse isso em João 17.12, na oração sacerdotal: “Enquanto estava com eles, eu os protegi e os guardei no nome que me deste. Nenhum deles se perdeu, a não ser aquele que estava destinado à perdição, para que se cumprisse a Escritura.” De fato em João 13.2 vemos que Judas agiu por sua própria vontade. E a sua vontade foi resultado da vontade de Satanás que o induziu a trair Jesus. No caso de Judas, os propósitos de Deus requeriam um traidor. Deus determinou. As Escrituras (inspiradas por Deus) previram a vinda desse “filho da perdição”. Mas, na hora “H”, Judas também quis trair, sendo que a vontade de Satanás o induziu a tanto. Literalmente a volição dos três personagens fluiu como um rio só. Essa volição confluente não anulou Judas nem tampouco Satanás. Mas a vontade de Deus foi a mais perfeita. Os dois agiram com um propósito momentâneo. Mas realizaram a vontade eterna de Deus. Foi por meio da ação, nascida da vontade de Satanás e Judas, que os Seus propósitos eternos foram cumpridos. Como dois rios pequenos que se juntaram a um rio grande e forte, confluíram na mesma direção. Há outro exemplo em José, achado em Gênesis 45. Quando José finalmente se revelou a seus irmãos, disse: “Eu sou José, seu irmão, aquele que vocês venderam ao Egito! Agora não se aflijam nem se recriminem por terem me vendido para cá, pois foi para salvar vidas que Deus me enviou adiante de vocês (…) Assim, não foram vocês que me mandaram para cá, mas sim o próprio Deus” (Gn 45.4b-5, 8a). Mas os irmãos de José agiram com “livre-arbítrio” ou não? Claro que sim. Mas o seu “livre-arbítrio” confluiu com a vontade de Deus, que não pode ser resistida❞ (Walter McAlister, PREDESTINAÇÃO OU LIVRE ARBÍTRIO? http://zip.net/byqNwm). 

Isto posto, concluímos: parece que teólogos sérios, calvinistas ou arminianos (embora eu tenha citado apenas os calvinistas, por razões óbvias), não se atrevem a negar a predestinação ou o arbítrio humano, desmoralizando um em detrimento de outro. Pelo contrário, eles afirmam a ambos, embora isto não possa ser cabalmente explicado e compreendido, pois são verdades absolutas, inegáveis, não porque calvinistas ou arminianos queiram assim, mas porque as Escrituras afirmam assim!

Ainda depõe contra os calvinistas ultrarradicais a questão da desonestidade intelectual, a citação de textos que apenas corroboram com as suas convicções. A boa honestidade intelectual ensina que devemos ler o texto todo e buscar transmitir-lhe a ideia central, e jamais pinçar partes que nos sejam convenientes. Quem ler de forma isenta o sermão AS BÊNÇÃOS DO PACTO e o comparar com UMA DEFESA DO CALVINISMO compreenderá o sentido da expressão usada por Spurgeon "o deus arminiano não é o meu Deus". Creio que é aí que estes hiper-ultra-super-mega calvinistas revelam sua desonestidade: assim como neopentecostais (que eles tanto combatem), eles também pinçam textos convenientes na Bíblia e fazem o mesmo com escritos de seus reformados favoritos, omitindo-lhes estrateicamente o contexto. Nada de novo debaixo do sol, caro Salomão!

Parece-me que outro dos erros comuns ao calvinismo e ao arminianismo é tentar dar status de infalíveis e inerrantes aos seus ídolos, seus escritos e suas falas! Entretanto, eles próprios se contradizem, como Spurgeon nos textos citados de seus dois sermões. Encontramos contradições em Calvino e Armínio, assim como nos seus discípulos. São todos, de ambos os lados, humanos e falhos! Por isso, o crivo sempre será a Escritura! “Seja sempre Deus verdadeiro, e todo homem mentiroso” (Rm 3:4).

E o que dizer, senhores hiper-calvinistas, sobre esta outra fala de Spurgeon, completamente antagônica aos princípios calvinistas, comentando 1 Tm 2:3-4? Por que não é usada, mas é completamente descartada? Por que, em páginas calvinistas das Redes Sociais, quando alguém a cita é rapidamente excluído e bloqueado, e a citação deletada? Desconhecem que o mesmo Spurgeon, calvinista que defendia o calvinismo com unhas e dentes, tinha esta visão?

Vocês, muitos de vocês, conhecem bem o método geral pelo qual os nossos velhos amigos calvinistas tratam este texto. 'Todos os homens', dizem eles - 'isto é, alguns homens', se quisesse dizer alguns homens. 'Todos os homens", dizem eles; 'isto é, alguns de todos os tipos de homens', se Ele quisesse dizer isso. O Espírito Santo, por meio do apóstolo, escreveu 'todos os homens' e, inquestionavelmente, Ele quer dizer todos os homens. Sei como descartar a força do termo 'todos', segundo aquele método crítico que há algum tempo era muito corrente, mas não vejo como se pode aplicar isso aqui mantendo a devida consideração pela verdade. Há pouco estive lendo a exposição de um habilidoso doutor que explica o texto acabando com ele; ele aplica pólvora gramatical ao texto, e o faz explodir a título de explicá-lo. Quando li a sua exposição, pensei que teria sido um comentário de capital importância se o texto dissesse: 'Que não quer que todos os homens se salvem, nem que cheguem ao conhecimento da verdade'. Se essa fosse a linguagem inspirada, todas as observações feitas pelo ilustre doutor ser-lhe-iam exatamente fieis, mas como acontece que ela diz, 'Que deseja que todos os homens sejam salvos', as suas observações estão mais de que um pouco fora de lugar. Meu amor pela coerência com meus conceitos doutrinários não é suficientemente grande para me permitir alterar conscientemente um único texto das Escrituras. Tenho grande respeito pela ‘ortodoxia’, porém a minha reverência pela inspiração é muito maior. Prefiro cem vezes ou mais parecer incoerente comigo mesmo a ser incoerente com a Palavra de Deus... - Iain Murray, SPURGEON VERSUS HIPERCALVINISMO. PES. 2006. p. 171-172, coletado AQUI
(Permitam-me um parêntese: o título da obra citada é pertinente, pois já na época de Spurgeon havia hiper-ultra-super-mega calvinistas, e ele os combatia! Sem dúvida, era homem de Deus! E acreditem: na pesquisa para este artigo, encontrei textos hiper-calvinistas desmoralizando o autor Iain Murray, do livro e da citação acima, em uma argumentação ad hominen que dá dó...)

Portanto, seria importante que, antes de convocar Spurgeon, ou qualquer outro escritor reformado, para as falanges dos hipercalvinistas condenadores dos que pensam diferente, que os tais observassem se os mesmos realmente defendem o tempo todo as suas causas! Em outras palavras: sabem aquela famosa frase hipercalvinista que diz "Quem afirma que é calvinista, mas afirma igualmente respeitar arminianos ou defende alguma de suas doutrinas, não é calvinista, e sim arminiano!"? Spurgeon, portanto, era arminiano, uma vez que defendeu o arbítrio humano e a expiação ilimitada!

Por isso amo Spurgeon, e os demais reformados coerentes e cristãos, do passado e do presente: são humanos e, consequentemente, contraditórios e falhos; defendem suas posturas teológicas com paixão e fervor, mas respeitam opiniões contrárias!

Encerrando: nas questões colunares de nossa fé, prossigamos inflexíveis! Nas secundárias, sejamos tolerantes. E chego pelo menos a uma conclusão: os hiper-calvinistas a quem me refiro, que mandaram aprender com Spurgeon, estavam certos que Spurgeon tem muito a nos ensinar. Inclusive, e principalmente, aos hiper-calvinistas!

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