O tão anunciado artigo sobre o livro “Sob os céus da Escócia (2015)” da lavra do Rev. Alan Renê de Lima foi finalmente publicado. Em
primeiro lugar, analisando particularmente seu conteúdo, tive a impressão (isso
só percebe quem conhece o livro) que o articulista leu a obra, mas não entendeu
sua proposta. Além do mais, que ele não tenha gostado do livro isso restou
claramente evidenciado e é até um direito que lhe assiste. Por outro lado, e
com máxima distinção, igualmente evidente que não o entendeu. Todavia, como ele
se esforça para descredibilizar o livro, sobretudo no tocante às fontes, julgo
ser interessante logo de início tecer algumas considerações a respeito. Portanto,
afirmações equivocadas de menor gravidade, como minha qualificação como
ministro da Igreja Episcopal Carismática, serão deixadas de lado.
O articulista parece estranhar não apenas as fontes,
mas igualmente os eventos envolvendo profecia preditiva, curas inexplicáveis e ressurreições
informados no livro. Com efeito, todos os relatos carreados em Sob os céus da
Escócia, são registros históricos extraídos de fontes reformadas e calvinistas,
escritas por autores igualmente reformados e calvinistas. Gente séria que angariou
reputação ilibadíssima, tais como John Howie, Theodore Beza, Robert Fleming,
London Gardner, Patrick Hamilton, Peter Hume Brown, Patryck Walker, Alexander
Smellie, et al. Todavia o articulista
manifesta seu inconformismo talvez porque tais relatos confrontem sua posição
teológica. As fontes das quais me utilizo, foram utilizadas pelos Drs.
Lloyd-Jones, bem como pelo Dr. Ian Murray em The Puritan Hope (Banner of Truth,
1971) e outros tantos escritores reformados. O uso de tais relatos não ficou
restrito aos séculos 16, 17 e 18. Em um de seus livros, Lloyd-Jones diz que
houve um homem chamado John Welsh que era tão
reformado e tão calvinista como seu sogro, John Knox. Foi dito dele - e há boa
prova disso num livro escrito por um escritor igualmente reformado e calvinista
- que, quando ele residia no sul da França, foi usado para ressuscitar uma
mulher dentre os mortos. [...] Ou considerando o dom de profecia, façamos uso
da ilustração. Tome de novo o caso de John Welsh, ou de outro grande ministro
da Escócia, Alexandre Peden. Se vocês lerem as biografias desses homens, verão
que eles puderam proferir profecias de eventos que aconteceriam na Escócia - e
que de fato aconteceram.[1]
A diferença substancial entre os apontamentos do Dr.
Lloyd-Jones e os apresentados em Sob os céus da Escócia é que dou nome aos protagonistas,
enquanto Jones apenas menciona fatos. Ele fala da ressureição, enquanto eu,
informo ao leitor outros dados históricos como detalhes que o envolvem, à
semelhança da ressurreição do Lorde Ochiltree, pelas mãos de Welsh.[2] Dou vida e
precisão histórica aos relatos citando profecias nos ministérios de John Welsh,
John Knox, George Wishart, Alexander Peden, John Davidson, Richard Cameron,
Robert Bruce e John Semple. São indubitavelmente oito respeitáveis ministros.
Não há na minha lista nenhum louco ou fanático. Todos homens que amavam a
Palavra e pregavam-na com todo ardor. Contudo, profetizaram coisas
impressionantes, incluindo detalhes sobre as mortes de determinadas pessoas com aquela precisão cirúrgica que chega a causar assombro.
Além do mais, quando isso foi possível, fiz uso de
mais de uma fonte. Tome como exemplo o relato sobre uma ocorrência de profecia
com João Calvino registrada por Beza e que foi publicada na biografia do
principal reformador de Genebra. Além de apontar o registro de Thomas Boys
(1832), informo ao leitor que o mesmo relato se encontra na obra de London
Gardner (1744), bem como numa tradução do latim para o inglês publicada em 1844
pela Calvin Translation Society. Foi
a partir desse tipo de obra altamente qualificada que pesquisamos. Contudo, o
articulista tem insistido “ad nauseam”,
em atacar a credibilidade afirmando categoricamente que o livro é mal
pesquisado. O que não é verdade.
O articulista teve dificuldade para localizar fontes
e protesta logo de início que a confusão se dá por uma suposta imperícia minha
em alocar as referências seguindo rigor das normas científicas:
“Um exemplo disso
pode ser percebido no fato de que, ao tratar do alegado continuísmo do escocês
George Gillespie nenhuma fonte primária é apresentada, com exceção da menção a
dois tratados sobre o dom de profecia no Novo Testamento (p. 65, nota de rodapé
nº 15). Não há nenhuma declaração do próprio Gillespie. Há apenas testemunhos
oriundos de biografias. Na verdade, as únicas palavras de Gillespie
documentadas (p. 64) são tomadas a partir de uma fonte secundária difícil de
identificar, dada a maneira equivocada como as notas de rodapé estão
organizadas do ponto de vista da metodologia da pesquisa científica.”
Quanto ao protesto acima, explico. As referências de
nº 13 e 15, estão jungidas à 33 que na página 58 menciona a obra sobre a qual
eu extraio as citações de Gillespie. É verdade de fato que Gillespie faz um
apanhado de trabalhos inclusive da Patrística tais como Crisóstomo, mas o faz
afirmando claramente que tais testemunhos são tomados como sua posição
particular e conclui dizendo que ele próprio testemunhara ocorrências
proféticas em seus dias:
“E agora, tendo
ocasião, eu tenho que dizer isto, para a glória de Deus, havia na Igreja da
Escócia, antes do tempo da nossa primeira Reforma e depois da Reforma, em ambas
as ocasiões tais homens extraordinários, superiores a simples pastores e
mestres, nivelados aos santos profetas recebendo revelações extraordinárias de
Deus e predizendo diversas coisas incomuns e acontecimentos notáveis, as quais
aconteciam promovendo grande admiração em todos aqueles que os conheciam em
particular.”( p. 64, nota 13).
A propósito, a nota de rodapé de número 15 na página
65, tão somente descreve o título dos ensaios sobre a matéria escritos por
Gillespie em Treatise of Miscelany Questions, parte de Works of George Gillespie – One
of the Commissioners from Scotland to the Westminster Assembly. Contudo,
tais ensaios são mencionados apenas como informação complementar. Caso o leitor
deseje averiguar e pesquisar mais acuradamente. Eu lançarei mão deles no volume
2. Sobre a obra mencionada acima, a edição que tenho é um reprint do original de 1644 e publicado pela Still Waters em 1991.
A propósito, a citação acima é extraída da obra adrede mencionada
especificamente da pág. 30 de Treatise of
Miscelany Questions. Seria esta fonte marginal ou sem credibilidade? O
esforço do articulista demonstra-se mais como o desejo de confundir a mente do
leitor, do que propriamente auxiliá-lo.
Ele também me acusa de ter afirmado o viés
continuísta da CFW, quando em nenhuma das páginas do livro o tenha feito. Nem
tampouco afirmei categoricamente que qualquer dos puritanos citados fosse
continuísta. Disse que a CFW é um documento redigido com caráter conciliatório.
Segundo eu o Dr. Milne entendemos, sua concepção se presta à articulação com
fins políticos de pacificação, necessária em um cenário religioso, civil e
político bastante conturbado. Neste sentido, não importa o que cada puritano em
particular escreveu em defesa de um cessacionismo específico ou de um
continuísmo incipiente. Importa é que o enunciado da Confissão apenas se opõe tacitamente
quanto à possibilidade de novas revelações com força de mandamentos universais
para a Igreja. Este propósito da profecia, sustento no livro, cessou. A que
permanece em nossos dias, também sustento no livro, é de caráter
extraordinário. Assim sendo, eu não consigo entender que o articulista tenha
interpretado como completo revisionismo histórico o simples apontamento através
da história da mentalidades quanto ao surgimento do cessacionismo atual como uma
excrescência teológica.
Por conseguinte, para quem alega possuir credenciais
acadêmicas e treinamento teológico formal, o articulista se autodenuncia quando
não compreende evidências muitos simples, que podem ser deduzidas facilmente
com uma leitura cuidadosa. Tome o exemplo quando ele diz que eu não me preocupo
em apresentar uma definição sobre qual seja o cessacionismo confrontado na obra,
e me acusa de atacar tão somente o sistema quando lhe associo ao ateísmo bem
como ao liberalismo de Bultmann. No entanto, eu apenas usei a mesma “régua”
utilizada por MacArthur quando este mediu o continuísmo – sem conceitua-lo
devidamente, diga-se de passagem. “Com a
medida que medirdes, vos medirão também”, disse nosso Senhor. Pois bem, no livro
Os Carismáticos (Fiel, 1995), MacArthur
a certa altura na página 61 defende a ideia de que a teologia que “possa resultar de nossa experiência não é
originária do movimento carismático. Ironicamente, diversos elementos, todos
anti-cristãos, têm contribuído para que esse conceito de teologia experimental
cresça: Existencialismo, Humanismo e Paganismo.”. Então o continuísmo pode
ser acusado injustamente de possuir raízes no paganismo, enquanto o
cessacionismo não pode sê-lo por irmanar-se a pressupostos
anti-sobrenaturalistas ateístas ou liberais? Se MacArthur pode proceder como
demonstrado em julgamento particular, seus opositores podem fazê-lo ao refutar
o tipo de cessacionismo que ele abraça. Por outro lado, está tão claro que eu
trabalho o cessacionismo mais vulgarmente conhecido e divulgado aqui no Brasil,
que julguei desnecessário expor os detalhes das variações próprias do sistema.
Ora, se na obra eu dialogo com as teses de cessacionistas tais como Richard
Gaffin (p.175ss), Sinclair Ferguson (p. 196), Brian Schwertley (p.184), MacArthur
(p. 157ss), Palmer Robertson (p.171), eu realmente necessito esclarecer contra
qual cessacionismo me insurjo?
Ele também afirma que eu sustento alegação de que
George Gillespie era continuísta. Por outro lado, há uma afirmação muito clara
carreada no livro que não foi transcrita no artigo, onde digo:
“Ainda que não seja provada sua aliança com o continuísmo, Gillespie
se rendeu aos fatos e os explicou da única forma que poderia tê-los explicado:
afirmando que, tendo sido encerrado o cânon bíblico, Deus falou
extraordinariamente através de instrumentos humanos, revelando fatos
impressionantes que se cumpriram para espanto de toda nação escocesa” (p.65). [grifo
meu]
Onde estaria minha alegação de que Gillespie era
continuísta? O articulista poderia ter transcrito algum trecho do livro com a
dita alegação, o que não ocorreu. Não satisfeito, afirma que além de Gillespie,
rotulei Calvino, Samuel Rutherford e Jonathan Edwards igualmente como
continuístas. Ora, vejamos se procede a afirmação. Na página 57 após informar
sobre determinada ocorrência profética com Calvino, digo o que segue: “Neste sentido, é possível admitir a
possibilidade de clarividência sem ser necessariamente um carismático.”
E prossigo dizendo que “a despeito do que
Calvino tenha escrito dentro de uma visão pessoal sobre pontos assumidamente
controversos, ou sobre textos em particular, foi posto à prova, conforme
demonstrado na narrativa há pouco citada e vista na sua biografia escrita por
Beza, qual seja, que ocorrências miraculosas não foram completamente excluídas
nem do seu credo nem da sua experiência” (p.58). Na página 94, analisando
algumas ocorrências no ministério de George Wishart (1513-1546), assevero: “É preciso que se diga que tais reuniões não
eram ajuntamentos em busca novas revelações proféticas. O povo juntava-se para
ouvir atentamente a exposição bíblica”. E mais adiante, na página 96, ainda
sobre ele, afirmo: “As profecias aqui
registradas não eram o norte de seu ministério. Sua função como pregador da Palavra
inspirada era a atividade em que se dedicava. Pregar as Escrituras com
fidelidade de maneira a instruir o povo em todo desígnio de Deus era seu
alicerce ministerial. Mas isto não o impediu de se dedicar à oração e de ser
canal da vocalização profética em seu tempo.” Já no capítulo onde analiso
as profecias de John Knox (1505-1572), na página 106, registro minha impressão acerca
de um relato do próprio em que ele afirma que suas esperanças “não repousam em seu poder profético, porque
este poder estava sujeito à cessação. Sua confiança está alicerçada na Palavra
revelada, ainda que ele seja difusor da anunciação de fatos estranhos e
incomuns em seus dias”. E desta forma, sigo no decorrer do livro inteiro fazendo
afirmações semelhantes. Assim sendo, quem de fato usa textos de maneira
dogmaticamente seletiva? O autor do artigo somente confirma que se utiliza da
máxima de Lenin: “Acuse seus adversários
daquilo que você faz; chame-os daquilo que você é.”
Quanto à minha interpretação acerca das linhas
gerais da Confissão de Fé, bem como da Assembleia que a redigiu, o articulista omite
expressões centrais de meu raciocínio e induz o leitor de sua crítica a erro. Ele
pinça determinada afirmação particular para dizer que a linha de pesquisa
empreendida no livro sugere que os delegados de Westminster combatiam tão
somente o romanismo. E omite do contexto uma palavra crucial para o
entendimento de meu raciocínio. Na transcrição abaixo, o uso da expressão “por
exemplo” por si só explica que meu intento é dizer que a prática do comércio de
indulgências promovida pela ICAR, era “um dos” problemas. Apontar “um dos
problemas”, não é o mesmo que afirmar haver um “único”:
Os
teólogos de Westminster estavam se opondo claramente à tradição romanista das
indulgências, por exemplo.
Neste sentido, ninguém poderia se apresentar como portador de nova revelação
divina referente à salvação humana, tendo em vista o assentamento definitivo de
doutrina a respeito. (p.36).
Diferente do
afirmado, eu não situo a polêmica como direcionada única e exclusivamente à
Igreja de Roma como sugerido. A propósito, mantenho a mesma percepção de Robert
Letham e do Derek Thomas ao apontar a disputa como antiga. O conflito com os
romanistas e anabatistas é denunciado por mim na página 49 Sob os céus da
Escócia, da seguinte forma:
Ele
também pronunciou-se contra o erro daqueles aos quais chamava de entusiastas,
que relativizavam as Escrituras e a autoridade da Igreja ao apelarem para
supostas revelações diretas e especiais de Deus. Não obstante, Calvino os
combatia porque, em geral, os ensinos dos entusiastas referentes às
reivindicadas manifestações de revelação eram contrários às Escrituras
Sagradas. O conteúdo dos ensinos contrariava a Bíblia e, portanto, colocavam em
xeque as revelações canônicas. [... Neste caso, para Calvino, seria um erro
conceber que Deus entrasse em demanda contraditória contra si próprio. Em
ligeira síntese, Calvino combate a pretensa autoridade do entusiasta de seu
tempo, sobretudo porque seus ensinos contrariavam a Bíblia e isto era
inconcebível para o reformador.
Antes, no entanto,
ainda na página 26, trago ao conhecimento do leitor quais seriam tais ensinos e
revelações, ao citar, como exemplo, o conteúdo das pregações apocalípticas de
Melchor Hoffman. E ainda quanto aos quakers, não merece prosperar a alegação
do articulista de que os conflitos com eles se davam porque entenderam a CFW
como cessacionista. A refrega era na busca pela apropriada definição sobre o
aspecto ordinário/extraordinário da revelação imediata. O que eles não
aceitavam era que as comunicações do Espírito com o espírito do crente fossem
confinadas ao status de
extraordinárias. Para os quakers,
essa comunicação tinha caráter essencialmente ordinário. John Howe teceu considerações importantíssimas a este
respeito em The Whole Works of John Howe, estabelecendo distinções entre revelação
sobrenatural imediata, mediata, profecia, iluminação, premonições, etc.. Samuel Rutherford estabeleceu
a revelação sobrenatural em quatro
categorias distintas (p. 69), a saber: 1) Revelação profética; 2) Revelação especial
somente ao eleito; 3) Revelação de alguns fatos estranhos a homens piedosos; 4)
Revelação falsa e satânica.[3] Com isto, buscava-se
preservar as revelações canônicas na formação da Escritura, de outras
manifestações que se mostravam recorrentes no século 17. Eu avalio as
conclusões de Rutherford com muita seriedade porque entendo como o Dr.
Poythress que ele foi efetivamente o líder “na
orientação teológica dos assuntos mais controvertidos discutidos na Assembleia”
(p.68). Sua posição sobre o tema foi acatada, qual seja, que revelação
sobrenatural, como evento extraordinário, pode acontecer mesmo com o
encerramento do cânon. Além dos
dois, William Bridge fez o mesmo especialmente no
sermão Scripture
light the most sure light. A ideia era separar o joio do trigo, visto que
muitos grupos místicos reclamavam possuir revelações diretas da parte de Deus e
causavam toda sorte de confusão com vários ensinos contrários à verdade
revelada inclusive pelo próprio Cristo. Por isso o uso, por exemplo, do texto
de Hebreus 1.1 na CFW.
Mas para entender
melhor o conflito envolvendo os quakers,
é de bom alvitre ouvi-los. Robert Barclay (1648-1690), importante teólogo do movimento,
apelou para o texto de que “ninguém
conhece o Filho senão o Pai; e ninguém conhece o Pai a não ser o Filho, e
aquele a quem o Filho o desejar revelar” (Mt 11.27. KJV). Para quakers proeminentes, esta revelação do
Filho se dá “no” e “pelo” Espírito, portanto, o testemunho deste é o único meio
pelo qual o cristão pode alcançar o verdadeiro conhecimento de Deus. A cizânia
se desenrolava no sentido de que para estes a Escritura não poderia ser única
regra de fé e prática, mas o Espírito Santo, revelando-se internamente ao
crente. Responder a este padrão subjetivo foi o motriz dos esforços puritanos
para assentar a cláusula de que a Bíblia, mediada pelo Espírito era de fato a
fonte pela qual todas as demandas deveriam ser julgadas. Este ponto da disputa restou
evidente na conhecida Confissão de Fé Quaker The Confession of the Society of
Friends, Commonly Called Quakers (1675).
Barclay também sugere
que a ferrenha oposição dos quakers
em relação aos puritanos girava em torno de uma exacerbada busca por
conhecimento acadêmico. Esta busca, segundo ele, não avalizava o verdadeiro
conhecimento de Deus nem era garantia de espiritualidade profunda. Defende
também que embora a Escritura fosse autoritativa, era um fundamento secundário
e subordinado ao Espírito. Este é o guia e principal líder segundo o qual os
santos são levados à verdade. Para os quakers,
o Espírito é superior e não se subordina à Palavra. Por sua vez, George Fox
(1624-1691) afirmou o Cristo como o Logos
divino, o Verbo encarnado, e a Escritura como palavras de Deus. Fox sustentava a
superioridade de Cristo em relação à Escritura.[4]
Em síntese, a Escritura são palavras de Deus, mas não é Deus.
A discussão com os quakers e outros místicos não estava
associada necessariamente quanto à possibilidade de revelação extra-bíblica,
mas em definir este tipo de revelação como extraordinária, ao invés de
ordinária como desejavam os quakers.
Mas este detalhe foi expresso na Confissão de maneira subjacente.
Os quakers
também foram combatidos pelos puritanos por que algumas das conclusões eram
flagrantemente contraditórias, não apenas em relação à Escritura mas às
próprias teses que defendiam. Tome como exemplo uma declaração confusa de
Barclay ao afirmar que “a revelação
interna não contradiz as Escrituras e nem a correta e sã razão”, para logo
em seguida afirmar que “a revelação não
pode ser julgada pelas Escrituras, nem pela sã e correta razão.” Os
puritanos disputavam a própria existência de revelações imediatas nos moldes
quakeristas. Para eles, a ocorrência de profecias não era mais possível de
acontecer ordinariamente como no NT.
Extraordinariamente, talvez.
No entanto, o
articulista alega que a interpretação dos quakers
sobre o que se redigiu no capítulo primeiro da CFW é crucial para entender que
os divines estavam de fato falando irrestritamente
de cessação revelacional imediata. Parece-me claro que Richard Cameron e outros
tantos puritanos nem se deram conta que a CFW era cessacionista nestes moldes,
visto que em anos posteriores à publicação verificou-se atividade profética
entre eles. Uma das profecias, pronunciada por Cameron, é citada na página 125
de Sob os céus da Escócia, muitos anos depois do encerramento de Westminster.
O articulista fez uso
da obra de David Dickson, sob a premissa de que este possui autoridade para
firmar entendimento definitivo sobre a CFW por ser dela contemporâneo, e,
portanto, familiarizado com seu contexto religioso, bem como com as suas
conclusões. Convém perguntar: Os quakers
também não eram contemporâneos e também não estavam familiarizados com o
contexto? Os anabatistas, seekers, et al.,
também não? No entanto, ele traz ao nosso conhecimento a obra intitulada Praelectiones in Confessionem Fidei
relatando impressões sobre um tipo rigoroso de cessacionismo puritano esposado
por Dickson. Valer-se de Êxodo 17.14 para afirmar categoricamente que quanto
aos modos de revelação “[...] todos findaram com
a escrita” (Êx 17:14), me parece um exagero típico. Onde tal “indício”
escriturístico pode ser utilizado apropriadamente como prova de cessação
revelacional ad eternum? Apenas por
que o Senhor ordenou que se registrasse um fato e que este fato memorial fosse
lido para Josué? Usar este tipo de exemplo para determinar a cessação
revelacional definitiva é o mesmo que apresentar uma faca como evidência de um
homicídio praticado com arma de fogo.
A teologia reformada não é tão melindrosa como a erudição cessacionista
deseja nos fazer crer. Sobre a questão que envolve a natureza do NT, por
exemplo, Calvino sobre o texto de 2Tm 3.17, disse:
Ao falar 'Escritura' significa que Paulo
está falando simplesmente do que chamamos de Antigo Testamento; como ele pode
dizer que pode fazer um homem perfeito? Se é assim, o que foi adicionado mais
tarde através dos Apóstolos parece ser supérfluo. Minha resposta é que, tanto
quanto a substância da Escritura está em causa, nada foi acrescentado. Os
escritos dos apóstolos não contém nada além de uma simples e natural explicação
da Lei e dos profetas, juntamente com uma descrição clara das coisas nele
expressas.[5]
Por conseguinte, o
articulista se socorre em Robert Letham, corroborando a tese de que “a questão da revelação especial não foi alvo
de discórdia que demandasse uma acomodação de opiniões divergentes.” E
prossegue argumentando que “houve acordo
generalizado sobre o seu conteúdo”. Mas não me ocorre tenha eu afirmado no
livro que havia dissensão no Concílio sobre o conteúdo da revelação especial
conforme registrado na Bíblia. Sugere também que os debates na Assembleia de
Westminster mantinham-se sob um “clima ameno”, sem maiores controvérsias e
polêmicas. Ora, se John Milton, assim como erastianos e representantes do
Parlamento (alguns descrentes?) estavam presentes, dizer que não houve polêmica
é ignorar a natureza dos conflitos humanos. John Milton mesmo é conhecido por
uma posição controvertida sobre o divórcio que foi duramente rechaçada pela
Assembleia. Mas ouçamos o Dr. Milne, sobre o background daqueles delegados:
“Eles vieram para a
Assembleia com um pano de fundo
profundamente influenciado por um protestantismo polêmico que deve muito a
esses estudiosos como Martinho Lutero, João Calvino, Zwinglio Huldrich, Henry
Bullinger e Pedro Mártir Vermigly. Enquanto João Calvino foi sem dúvida a força
dominante entre os puritanos e os escoceses ele não era de modo algum a única. Além disso, o “Calvinismo” foi representado
por um espectro de opiniões teológicas dentro de parâmetros reconhecíveis. Isso
ficou evidente na própria Assembleia, onde os debates sobre a doutrina da
expiação foram expostos radicalmente com diferentes interpretações da sua
extensão e aplicação. Não devemos supor
que porque Calvino manteve certos pontos de vista sobre a cessação da revelação
sobrenatural, estes foram necessariamente espelhados nos documentos da
Assembleia de Westminster.”[6]
Quanto aos
comentários sobre o termo “salvação” que uso para revisar a majoritária
interpretação da Confissão, o articulista subscreve que entre os puritanos
havia aplicação diversa. A tese do Dr. Milne está correta, no entanto o
articulista revela que não apreendeu acertadamente seu escopo. Ou seja, ele
busca provar que o termo “salvação” expresso no capítulo I da CFW, tem uma
abrangência tal que se torna difícil saber qual tipo de salvação os delegados de
Westminster tinham em mente. E que em relação a isto, tanto minha análise,
quanto minha conclusão laboram em erro. A questão é que meu ponto trata
especificamente do termo e seu uso no capítulo I; e mesmo este uso tem conexão direta
com os demais ao longo do documento (2.1; 3.5,6). Não há conflito entre a minha
tese e a do Dr. Garnet Milne. Ou seja, ainda que o termo “salvação” pudesse ter
significado diverso na CFW, no capítulo primeiro ele se relaciona essencialmente
com soteriologia e com uma teologia escatológica do Reino mais abrangente com
referência ao seu aspecto primordialmente espiritual. Berkhof diz que “o Reino de Deus é representado não como temporal, mas como um
reino eterno (Is 9.7; Dn 7.14; Hb 1.8; 2Pe 1.11). Assim,
entrar no Reino do futuro é entrar num eterno estado (Mt 7.21-22), é entrar na
vida (Mt 18.8-9), é ser salvo (Mc
10.25-26)”.[7] [Grifo nosso].
É flagrante neste sentido
que o articulista parece não haver compreendido a conclusão do Dr. Milne. Este,
quando menciona os aspectos temporais da salvação, avaliados sob o crivo da
teologia do Reino de Deus mantém entendimento próximo ao meu. Contudo, sobre
isto, o articulista diz:
“Milne observa ainda que uma pesquisa
nos Padrões de Westminster “revela que o substantivo, as formas verbais e o
conceito de ‘salvação’ aparecem muitas vezes ao longo desses documentos, mas a
definição do conceito não é uniforme”.[8] Como
evidência dessa afirmação creio que alguns exemplos possam ser apresentados. No
Capítulo 2.1, sobre Deus e a Santíssima Trindade, salvação é entendida como
perdão dos pecados e libertação da justa retribuição da ira de Deus que não
inocenta o culpado. Em 3.5, sobre o Eterno Decreto de Deus, salvação é
conceituada como eleição em Cristo Jesus para a glória eterna. Já no parágrafo
6 desse mesmo capítulo os elementos dessa salvação são apresentados, a saber:
“santificação, justificação, obediência, santidade, adoção como filhos e boas
obras”.[9] No
caso, salvação compreende toda a Ordo Salutis. Milne conclui a
sua investigação sobre o sentido de “salvação” na CFW afirmando: “Dentro dos
capítulos da CFW nós encontramos evidência interna para uma ampla definição de
salvação que transcende redenção pessoal ou salvação escatológica e que oferece
ao crente benefícios que incluem bênçãos temporais”.
Agora, pedindo licença
ao articulista, indago: “Perdão dos pecados”, “libertação da justa retribuição
da ira de Deus que não inocenta o culpado” (uso do termo salvação na CFW 2.1), “eleição
em Cristo para a glória eterna” (uso em CFW 3.5), ou, “santificação”, “justificação”,
“obediência”, “santidade”, “adoção como filhos e boas obras” não representam a mesma coisa? (CFW 3.6). Só
quem é salvo, é justificado, obedece, santifica-se, tem o perdão dos pecados e
fica livre da justa retribuição da ira de Deus que não inocenta o culpado. Ora,
se dizemos que alguém foi eleito em Cristo para a glória eterna, certamente teremos
dito que ele foi o quê, senão salvo? Ou, se afirmarmos que alguém foi liberto
da justa retribuição da ira de Deus, estaremos afirmando o quê? Que este alguém
foi salvo, óbvio. E se eu assevero que um pecador foi justificado, não concluo
que tal justificação se dá para que a salvação (como benção temporal e eterna)
se estabeleça (Rm 8.29-30)? Neste sentido é que o capítulo 14 da CFW diz que
salvar-se é “aceitar e receber a Cristo e
descansar só nele para a justificação,
santificação e vida eterna, isso em virtude do pacto da graça”.
O que o Dr. Milne sugere
é que o termo “salvação” para os puritanos pode ser abrangente em certo sentido,
mas está ligado a uma única ideia central (ordo
salutis). E, evidente que transcende o ponto de redenção pessoal (ou
particular). Isto por que, na Escritura, salvação ora é mencionada a
indivíduos, ora a povos, nações, etc. Ora se fala em redenção de povos, ora, de
pessoas em particular. Basta uma lida em Romanos 8-9 para compreender isso. Além
do mais, trata-se de redenção escatológica tanto quanto se trata de salvação do
pecado estrutural que mantém influência neste mundo tenebroso. Salva-se também
aquele que se opõe à esta estrutura e se rende ao padrão do Reino de Deus em
confronto com o mundo que jaz no maligno. “Salvo” pode considerar-se aquele que
não se conforma com este século (Rm 8), e é neste sentido que, ao meu ver, a
redenção assume também aspecto de benção temporal apontado por Milne. Todavia,
o articulista se esforça inutilmente no propósito de tentar nos fazer acreditar
que existe diferença etimológica substancial entre “tire uma xerox” e “tire uma
xérox”, quando “tenho sede de água” e “vou à sede da empresa” é que são
realmente diferentes. A palavra “sede”, a depender do contexto e uso
empreendido, assume conotação diametralmente distinta.
E quanto a este
último ponto, ou seja, o fato do articulista não haver entendido o que o Dr.
Milne escreveu, de certa forma revela uma dificuldade hermenêutica alimentada
pela teologia dogmática. Em síntese, ele leu e não entendeu Sob os céus da
Escócia, tanto quanto leu e não entendeu o livro do Dr. Milne.
Por derradeiro, cabe
aqui uma pergunta, prezado leitor: Porque a Confissão de Fé de Westminster inicia
com um capítulo sobre as Escrituras Sagradas? Você nunca parou para se
perguntar a respeito? Natural seria que o primeiro capítulo reservasse espaço
para tratar sobre ontologia divina. Sendo esta, a prática corriqueira, por que os
teólogos de Westminster fizeram diferente? Penso que para registrar que estas
tensões eram tão fortes e significativas que exigiram lugar de destaque e
primazia nos debates. Mas este é um ponto que abordaremos no volume 2.
[1] Exposição sobre
Capítulo 12 de Romanos. O comportamento Cristão. Editora PES. 2003, p. 283.
[2] A propósito, o
relato de Lloyd-Jones combinado com o meu, aponta que fora, duas ressurreições
operadas a partir do ministério de Welsh
[3]
RUTHERFORD, Samuel. A Survey
of Spiritual Antichrist. London: Printed by F.D. & R.I for Andrew
Grookeand, 1648, chap. vii of revelation and inspiration, p.39.
[4] FOX, George. The Works of George Fox. Philadelphia:
M.T.C Gould, Journal, vol. i, 1831, p; 171.
[5] CALVINO, João.
The Second Epistle of Paul the Apostle to the Corinthians and Epistles to
Timothy, Titus and Philemon, eds. D.W Torrance, T.F. Torrance, trans. T.A.
Smail, Vol. 1, Calvin's Commentaries. Grand Rapids: W.m B. Eerdmans Publishing
Co., 1964.
[6] MILNE. Garnet
Howard, The Westminster Confession of Faith and Cessation of Special
Revelation. A Thesis submitted for the degree of Doctor of Philosophy at
University of Otago, Dunedin, New Zealand, 2004, pp 44-45. Como minhas consultas se deram na própria tese do Dr. Garnet,
encaminhada gentilmente por ele, e não no livro como o articulista, transcrevo ipsis literis o trecho como está na tese:
B.
Theological inheritance: “They
came to the Assembly with a background profoundly influenced by a polemical
Protestantism which owed much to such scholars as Martin Luther, John Calvin,
Huldrich Zwingli, Henry Bullinger and Peter Martyr Vermigli. While John Calvin
was arguably the dominant theological force among the Puritans and the Scots,
he was by no means the only one. Furthermore, “Calvinism” was represented by a
spectrum of theological opinions within recognizable parameters. This was
evident at the Assembly itself, where debates on the doctrine of the atonement
exposed radically different interpretations of its extent and application. We
should not assume that because Calvin held certain views on the cessation of
supernatural revelation, these were necessarily mirrored in the Westminster
Assembly documents.”
[7] BERKHOF. Louis, Systematic Theology. Grand Rapids:
Eerdmans, 1959, p. 708.
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